A "escola inclusiva" criou assimetrias sociais
tremendas e converteu os filhos dos pobres em bodes
expiatórios
Claro que não havia gala. Nem festas. Nem
fogo-de-artifício. Não só não era o melhor do mundo
como, à partida, todos os dias, professores e
padres, políticos e sociólogos, juízes e
jornalistas, usariam e abusariam de um conjunto de
estereótipos que não só explicavam o seu falhanço
como muito provavelmente o condenavam à partida a
ser um falhado. Ou mesmo um delinquente.
O pai alcoólico, a violência doméstica, os baixos
rendimentos da família e a separação dos pais seriam
explicações mais que suficientes para que nada se
esperasse dele na escola. Nem sequer bom
comportamento! Curiosamente, tudo aquilo que
explicaria o seu insucesso na escola torna-se um
argumento para o reforço do seu carácter e da sua
performance quando se fala de futebol. Os artigos
sobre a sua infância e adolescência tornaram-se,
graças a uns jornalistas em transe
místico-futebolístico, numa espécie de conto do
Dickens adaptado aos tempos modernos: o pai tinha
problemas com o álcool e um outro parente com a
droga? Eis então o jovem Ronaldo a abominar esses
vícios. A família deixou-o vir sozinho para Lisboa?
Eis uma opção a louvar porque de cada vez que ligava
para casa, a chorar com saudades, e não o deixavam
desistir, aprendia que há que fazer escolhas. Os
colegas gozavam com o seu sotaque madeirense? Havia
que trabalhar para ser melhor do que eles. E assim
sucessivamente até chegar ao triunfo.
Desconheço a real importância destes episódios na
vida de Cristiano Ronaldo, mas, a bem da verdade,
diga-se que dificilmente uma escola poderia impor
aos seus alunos o mesmo rigor que os treinadores
impõem aos candidatos a jogadores profissionais,
pois logo se vaticinariam mil traumas às crianças em
causa. O reverso de a escola não esperar grande
coisa destes alunos é que lhes exige pouco e não
lhes impõe nada.
Não sei se a memória da pobreza fez ou faz Cristiano
Ronaldo chutar melhor, mas tenho a certeza que caso
Cristiano Ronaldo tivesse ficado pela escola não só
ninguém teria pensado que ele poderia vir a ser o
melhor do mundo no que quer que fosse como, e isso é
que é grave, nem se esperaria que fosse sequer
profissionalmente competente.
Meninos como o Cristiano Ronaldo, com alcoolismo na
família, divórcio dos pais e baixos rendimentos,
constituem parte do grupo daqueles alunos que,
segundo a actual doutrina politicamente correcta
sobre a aprendizagem, levam a que o ensino público
"nivele por baixo". Nada melhor do que os
comunicados da Fenprof contra os rankings para
perceber como o Cristiano Ronaldo estava votado
escolarmente ao insucesso: "Os resultados académicos
reflectem realidades que devem ser analisadas à luz
de muitos factores, especialmente factores
socioeconómicos, linguísticos e culturais. Por isso,
não é legítimo colocar em pé de igualdade, em termos
de resultados esperados, todas as escolas do país
(públicas e privadas, do litoral e do interior)."
Nem de propósito. Ronaldo é o retrato do aluno
falhado à partida pelos "factores socioeconómicos" -
família pobre e com problemas -, "factores
linguísticos" - o sotaque madeirense não facilita a
vida a ninguém - e "factores culturais" - quantos
livros existiriam na casa da família Aveiro?
Neste particular, como em tudo o que são questões de
doutrina, a senhora ministra concorda com Mário
Nogueira e também ela declarou mal chegou ao Governo
que "falta uma informação fundamental para um
ranking poder ser uma coisa séria, que é a origem
social dos alunos e sem isso não é possível fazer
uma boa análise".
Felizmente que no ranking dos jogadores de futebol
não entra esta "informação fundamental" que é a
origem social dos avaliados. Aliás, se essa
informação fosse tida em conta, dificilmente o nosso
Ronaldo teria sido considerado o melhor jogador do
mundo, pois certamente que pululam por todos os
cantos e clubes jogadores com vidas muito mais
difíceis do que a dele outrora foi. Por outro lado,
se essa informação fosse tida como fundamental, os
treinadores e dirigentes desportivos passariam a
justificar os insucessos, falhanços, trafulhices e
demais desatinos das respectivas equipas com a
origem social dos seus jogadores, espectáculo a que
na graça dos deuses nos têm poupado. Infelizmente,
na língua de pau do politicamente correcto não
existe igual decência e todos os dias se diz e rediz
que os filhos dos pobres não aprendem como os dos
ricos. Quando na verdade o que acontece é que não
são ensinados como os dos ricos.
O falhanço de todas as incensadas políticas em favor
de uma "escola inclusiva", "que promova a
igualdade", "que não seja para ricos"... não só
criou assimetrias sociais tremendas como, por
grotesca ironia, converteu os filhos dos pobres no
bode expiatório do falhanço ideológico e
profissional daqueles que construíram confortáveis
carreiras na política e na administração sob o lema
do combate à pobreza e à discriminação. Que em
qualquer actividade uns são melhores do que os
outros é algo que o próprio Ronaldo mostra à
exaustão, mas que a nossa escola dita inclusiva
demorou a assumir (sendo certo que no dia em que tal
assumiu adoptou como doutrina a tese de que os
filhos dos pobres nivelam por baixo).
Desgraçadamente, não só este determinismo social se
instituiu na escola portuguesa - e recordo que nem
sempre assim foi - como vemos banalizar-se também um
discurso igualmente vexatório para os mais pobres
quando se associam baixos rendimentos e desemprego
com aumento da criminalidade. Confrontado com um
problema de violência nas escolas, o presidente do
Supremo Tribunal de Justiça, Noronha de Nascimento,
explicou o fenómeno acusando os desempregados ou
quiçá os seus filhos: "Se há gente a mais no
litoral, se não há emprego, se fecha a indústria, o
que é que a gente nova vai fazer? Estamos a falar de
gente nova, porque não são as pessoas de 50 ou 60
anos que estão a criar problemas. O que vão fazer as
pessoas que estão a começar a vida? (...) A escola é
um reflexo disto". E o próprio procurador-geral da
República, Pinto Monteiro, entendeu por bem
avisar-nos de que o desemprego e a exclusão social
podem motivar neste ano de 2009 uma verdadeira
"explosão de violência".
Por outras palavras, caso Ronaldo não tivesse optado
pelo futebol, e a fazer fé nas profecias
sociológicas vigentes, não só teria deixado a escola
cumprindo o que dele se esperava - ou seja, nada -
como os seus baixos rendimentos levariam a que
também, segundo as mesmas doutrinas, pudesse vir a
integrar os números da delinquência violenta, aquela
que se estima venha a aumentar por causa da crise e
do desemprego.
Numa sociedade que passa a vida a vasculhar sinais
de discriminação, não encontro nada mais
discriminatório do que estas teses aparentemente
consensuais da nossa Justiça e Educação. Tal como
também não consegui encontrar até agora qualquer
notícia sobre assaltantes e outros criminosos mais
ou menos violentos que se tenham dedicado a essas
práticas por terem ficado desempregados.
Ao contrário do que se gosta de acreditar, os pobres
raramente se revoltam. O mais que se consegue é que
ocupem o seu lugar mais ou menos folclórico em
revoltas que outros, mais abonados, lideram e
arquitectam. Quanto a dizer em Portugal, no ano de
2009, que a criminalidade nasce da pobreza parece-me
um óbvio insulto àqueles que todos os dias saem de
casa para receberem ordenados baixíssimos e terem
uma vida muito mais massacrada pelo Estado com
taxas, contribuições, multas e demais imposições do
que aqueles seus vizinhos que se dedicam ao crime.
Por tudo isso, honra seja feita ao mundo do futebol
e doutras modalidades desportivas que, ao contrário
da Escola e da Justiça, manda os fatalismos
sociológicos às malvas e faz milhares de miúdos
acreditar que podem ser os melhores do mundo. E
sobretudo que não se chega ao topo por passagem
administrativa e muita caridadezinha. Jornalista