A idade da desconfiança Adriano Moreira
Professor universitário
A conclusão abusiva de que a queda do Muro de
Berlim, em 1989, anunciava o fim da história
contribuiu para fortalecer a proclamação de que o
regime democrático não tinha desafios que obrigassem
a prever uma convivência inevitável com modelos
diferentes de governo. Alguns acidentes de gravidade
indiscutível, incluindo intervenções armadas de alto
custo humano e material, continuam a recomendar
moderação à pregação.
Ao mesmo tempo, a erosão da confiança dos cidadãos
nos responsáveis pelas instituições democráticas
vigentes nos países em que a adesão ao modelo é
antiga e sem alternativa credível cresce de
evidência. Não faltam observações sobre o
crescimento das abstenções nos actos eleitorais,
sobre a falta de dirigentes credíveis, mesmo nos
Estados que se libertaram da imposição soviética
animados pela esperança democrática, ou dos que
saíram do regime colonial de olhos postos nas
promessas da ONU.
Os estudos que se multiplicam são relativamente
seguros quanto à enumeração dos sinais da crise, mas
não são tão conclusivos no que respeita aos motivos
que levam os melhores a afastarem-se das
responsabilidades políticas, tudo implicando com o
prestígio dos controlos destinados a assegurar a
honesta governança, a começar pela função
parlamentar.
A circunstância inquietante de se terem autonomizado
poderes de abrangência transnacional, sem regulação,
como aconteceu com o sistema financeiro, não ajuda à
confiança, sem a qual o Estado não funciona com
eficácia, porque o desastre contamina as instâncias
políticas nacionais, por demonstrada incapacidade de
prever, por duvidosa capacidade de reagir, por
implicação de interesses públicos e privados nos
efeitos colaterais. Que das eleições decorra a
autoridade confiável dos escolhidos é uma evidência
posta crescentemente em dúvida por várias latitudes,
ou que fica dependente de demonstração.
Afirmam observadores que a "história das democracias
reais é inseparável de uma tensão e de uma
contratação permanente", e, para prevenir
deficiências na eficácia do ordenamento jurídico,
multiplicaram-se os actos eleitorais, recorreu-se à
democracia directa para hipóteses de grande
significado, criaram-se vigilâncias judiciais, para
"compensar a erosão da confiança com uma organização
da desconfiança". A evolução acelerada das
interdependências, a fragilização das representações
nacionais pela emergência de centros políticos
transnacionais, e até de poderes que escapam às
regulações, como acontece com o sistema financeiro
globalizado, atingiram a função da vigilância,
legalmente organizada, alimentando um estado de
espírito crítico das redes constitucionais do poder.
São largamente conhecidos factos que, em várias
áreas do globo, apoiam essa descredibilização, de
tal modo que se organizam redes críticas
paralelamente às redes legais, pondo em juízo
pilares da democracia como são o sistema eleitoral e
representativo, e até as instâncias reguladoras, em
moldes de independência em relação aos poderes
soberanos.
Críticos movem-se no sentido de encontrar expressão
organizativa, com hesitações sobre se virão a ser
partidos, ou movimentos, ou explosões sentimentais,
uma indefinição que acentua a desconfiança nos
modelos tradicionais de intervenção. A abstenção nas
urnas perde o significado da indiferença quando os
movimentos cívicos atípicos se multiplicam e
conseguem audiência, com tendência para ultrapassar
as fronteiras nacionais, mas para ali se encontrarem
com a desgovernança internacional. Os novos meios de
comunicação fornecem apoio às imaginações, desafiam
o isolamento dos cidadãos que se afastam dos modelos
tradicionais de intervenção, alertam para a
necessidade de solidariedades, forçando uma linha
entre o desencantamento e o renascimento da
esperança. Mas uma esperança difusa e insegura de
ser capaz de reorganizar os mecanismos da vida civil
e política, de fazer renascer a responsabilidade
pelo futuro, de evitar o alargamento da sociedade de
desconfiança que tende para dominar o panorama da
entrada no milénio: é urgente reforçar a esperança.