Diário de Notícias - 06 Jan 09

 

A idade da desconfiança
Adriano Moreira
Professor universitário

 

A conclusão abusiva de que a queda do Muro de Berlim, em 1989, anunciava o fim da história contribuiu para fortalecer a proclamação de que o regime democrático não tinha desafios que obrigassem a prever uma convivência inevitável com modelos diferentes de governo. Alguns acidentes de gravidade indiscutível, incluindo intervenções armadas de alto custo humano e material, continuam a recomendar moderação à pregação.

 

Ao mesmo tempo, a erosão da confiança dos cidadãos nos responsáveis pelas instituições democráticas vigentes nos países em que a adesão ao modelo é antiga e sem alternativa credível cresce de evidência. Não faltam observações sobre o crescimento das abstenções nos actos eleitorais, sobre a falta de dirigentes credíveis, mesmo nos Estados que se libertaram da imposição soviética animados pela esperança democrática, ou dos que saíram do regime colonial de olhos postos nas promessas da ONU.

 

Os estudos que se multiplicam são relativamente seguros quanto à enumeração dos sinais da crise, mas não são tão conclusivos no que respeita aos motivos que levam os melhores a afastarem-se das responsabilidades políticas, tudo implicando com o prestígio dos controlos destinados a assegurar a honesta governança, a começar pela função parlamentar.

 

A circunstância inquietante de se terem autonomizado poderes de abrangência transnacional, sem regulação, como aconteceu com o sistema financeiro, não ajuda à confiança, sem a qual o Estado não funciona com eficácia, porque o desastre contamina as instâncias políticas nacionais, por demonstrada incapacidade de prever, por duvidosa capacidade de reagir, por implicação de interesses públicos e privados nos efeitos colaterais. Que das eleições decorra a autoridade confiável dos escolhidos é uma evidência posta crescentemente em dúvida por várias latitudes, ou que fica dependente de demonstração.

 

Afirmam observadores que a "história das democracias reais é inseparável de uma tensão e de uma contratação permanente", e, para prevenir deficiências na eficácia do ordenamento jurídico, multiplicaram-se os actos eleitorais, recorreu-se à democracia directa para hipóteses de grande significado, criaram-se vigilâncias judiciais, para "compensar a erosão da confiança com uma organização da desconfiança". A evolução acelerada das interdependências, a fragilização das representações nacionais pela emergência de centros políticos transnacionais, e até de poderes que escapam às regulações, como acontece com o sistema financeiro globalizado, atingiram a função da vigilância, legalmente organizada, alimentando um estado de espírito crítico das redes constitucionais do poder. São largamente conhecidos factos que, em várias áreas do globo, apoiam essa descredibilização, de tal modo que se organizam redes críticas paralelamente às redes legais, pondo em juízo pilares da democracia como são o sistema eleitoral e representativo, e até as instâncias reguladoras, em moldes de independência em relação aos poderes soberanos.

 

Críticos movem-se no sentido de encontrar expressão organizativa, com hesitações sobre se virão a ser partidos, ou movimentos, ou explosões sentimentais, uma indefinição que acentua a desconfiança nos modelos tradicionais de intervenção. A abstenção nas urnas perde o significado da indiferença quando os movimentos cívicos atípicos se multiplicam e conseguem audiência, com tendência para ultrapassar as fronteiras nacionais, mas para ali se encontrarem com a desgovernança internacional. Os novos meios de comunicação fornecem apoio às imaginações, desafiam o isolamento dos cidadãos que se afastam dos modelos tradicionais de intervenção, alertam para a necessidade de solidariedades, forçando uma linha entre o desencantamento e o renascimento da esperança. Mas uma esperança difusa e insegura de ser capaz de reorganizar os mecanismos da vida civil e política, de fazer renascer a responsabilidade pelo futuro, de evitar o alargamento da sociedade de desconfiança que tende para dominar o panorama da entrada no milénio: é urgente reforçar a esperança.