Sempre me intrigou o uso da mentira para argumentar
o que quer que seja quando se sabe, de ciência
certa, que mais cedo do que tarde leva a maus
resultados. E na actual discussão sobre o referendo
ao aborto isso é de tal forma evidente que chega a
ser chocante.
Partindo do princípio que todos sabemos ler, a
pergunta proposta no referendo é, no essencial, se o
aborto pode ser realizado livremente, e por isso sem
qualquer penalização, por opção da mulher até às 10
semanas. Daqui decorrem várias consequências, uma
das quais, a mais importante para quem defende o
"sim", é que nenhuma mulher pode ser condenada se
praticar o aborto até às 10 semanas. Até aqui não há
discussão.
Mas há, obviamente, uma segunda consequência a
retirar, que é de uma lógica matemática imbatível: o
aborto, se praticado depois das 10 semanas, é e
será, face à lei actual e futura (porque ninguém a
parece querer mudar, nem os partidários do "sim"),
um crime. É por isso do domínio do delírio político,
ou da mais fina desonestidade intelectual,
argumentar-se que, caso ganhe o "sim", acaba a
despenalização ou criminalização do aborto. Não é,
simplesmente, verdade. Nem serve o argumento sobre
os julgamentos mediáticos que se assistiram nos
últimos anos, porque se referiam a gestações muito
para além das 10 semanas. Numa palavra: julgamentos
semelhantes àqueles realizar-se-ão na mesma, caso
ganhe o "sim". Com uma agravante: porque os
partidários do "sim" argumentam que a lei é para se
cumprir (e por isso dizem que a actual é hipócrita
porque não respeitada) é de esperar que se
manifestem junto dos tribunais (à semelhança do que
têm feito) a pedir justiça, que, no caso, pode
querer dizer prisão.
Outra não verdade (para ser simpático) refere-se aos
exemplos sobre os casos dramáticos que todos
conhecemos. Ora acontece que a lei actual já prevê a
despenalização nessas situações. Daí que argumentar
com a precariedade económica, ou alegar com a falta
de saúde (até psíquica) da mãe, ou do feto, não é
razoável (ou verdadeiro) porque todos estes casos
estão previstos na lei, e não é a vitória do "sim"
que vai alterar uma vírgula que seja.
Resta o óbvio: o que se pergunta é se o aborto pode
ser realizado, até às 10 semanas, por opção da
mulher. Ou seja, independentemente daquilo que cada
um possa pensar sobre as mulheres, sobre os homens,
sobre a responsabilidade, sobre a educação sexual e
o sexo em geral, sobre a família, a natalidade, os
hospitais, os médicos, o governo e por aí fora, o
que se pergunta é se uma mulher, uma qualquer,
quiser abortar até às 10 semanas, o possa fazer,
livremente e sem dar explicações, porque ninguém tem
nada a ver com isso.
Uma última, mas importante, correcção: há várias
fórmulas jurídicas de condenar o aborto sem
recorrer, necessariamente, à pena de prisão. O
Parlamento rebenta com propostas destas, mas quem
defende o "sim" recusa, sistematicamente, falar do
assunto. Mandatário da plataforma Não Obrigada