Público - 23 Jan 07

 

As (in)verdades do "sim"

Pedro Vassalo

 

Sempre me intrigou o uso da mentira para argumentar o que quer que seja quando se sabe, de ciência certa, que mais cedo do que tarde leva a maus resultados. E na actual discussão sobre o referendo ao aborto isso é de tal forma evidente que chega a ser chocante.
Partindo do princípio que todos sabemos ler, a pergunta proposta no referendo é, no essencial, se o aborto pode ser realizado livremente, e por isso sem qualquer penalização, por opção da mulher até às 10 semanas. Daqui decorrem várias consequências, uma das quais, a mais importante para quem defende o "sim", é que nenhuma mulher pode ser condenada se praticar o aborto até às 10 semanas. Até aqui não há discussão.
Mas há, obviamente, uma segunda consequência a retirar, que é de uma lógica matemática imbatível: o aborto, se praticado depois das 10 semanas, é e será, face à lei actual e futura (porque ninguém a parece querer mudar, nem os partidários do "sim"), um crime. É por isso do domínio do delírio político, ou da mais fina desonestidade intelectual, argumentar-se que, caso ganhe o "sim", acaba a despenalização ou criminalização do aborto. Não é, simplesmente, verdade. Nem serve o argumento sobre os julgamentos mediáticos que se assistiram nos últimos anos, porque se referiam a gestações muito para além das 10 semanas. Numa palavra: julgamentos semelhantes àqueles realizar-se-ão na mesma, caso ganhe o "sim". Com uma agravante: porque os partidários do "sim" argumentam que a lei é para se cumprir (e por isso dizem que a actual é hipócrita porque não respeitada) é de esperar que se manifestem junto dos tribunais (à semelhança do que têm feito) a pedir justiça, que, no caso, pode querer dizer prisão.
Outra não verdade (para ser simpático) refere-se aos exemplos sobre os casos dramáticos que todos conhecemos. Ora acontece que a lei actual já prevê a despenalização nessas situações. Daí que argumentar com a precariedade económica, ou alegar com a falta de saúde (até psíquica) da mãe, ou do feto, não é razoável (ou verdadeiro) porque todos estes casos estão previstos na lei, e não é a vitória do "sim" que vai alterar uma vírgula que seja.
Resta o óbvio: o que se pergunta é se o aborto pode ser realizado, até às 10 semanas, por opção da mulher. Ou seja, independentemente daquilo que cada um possa pensar sobre as mulheres, sobre os homens, sobre a responsabilidade, sobre a educação sexual e o sexo em geral, sobre a família, a natalidade, os hospitais, os médicos, o governo e por aí fora, o que se pergunta é se uma mulher, uma qualquer, quiser abortar até às 10 semanas, o possa fazer, livremente e sem dar explicações, porque ninguém tem nada a ver com isso.
Uma última, mas importante, correcção: há várias fórmulas jurídicas de condenar o aborto sem recorrer, necessariamente, à pena de prisão. O Parlamento rebenta com propostas destas, mas quem defende o "sim" recusa, sistematicamente, falar do assunto. Mandatário da plataforma Não Obrigada