Ricardo agarra o amigo pelo pescoço e simula que vai
atirá-lo ao chão. Têm nove anos e estão a brincar ao
wrestling no pátio da escola. Imitam o que vêem na
televisão. Não são os únicos, há miúdos de todas as
idades, do 1.º ao 9.º ano, que brincam sem medir
forças e por vezes vão parar aos hospitais. Por
Bárbara Wong
Começam a chegar às urgências dos hospitais com
dores de barriga, traumatismos cranianos, narizes
fracturados. São rapazes agredidos pelos colegas.
Não são vítimas de bullying, mas de wrestling. Ou
seja, não se magoaram devido a violência e coacção
entre colegas, mas sim por causa de brincadeiras em
que imitam o que vêem na televisão.
Os ídolos destes rapazes são homens musculados com
ares agressivos e fatos ridículos, que, numa arena
rodeada de um público ululante, gritam e praticam
uma espécie de luta greco-romana, mas à americana.
O fenómeno do wrestling não é novo, mas está a
chegar aos recreios portugueses, sobretudo depois de
o programa de televisão ter começado, no início do
mês, a passar na SIC generalista - desde 2004 que
vai para o ar na SIC Radical.
A Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI)
e a Associação de Consumidores dos Media já
receberam queixas. A primeira de pais preocupados
com o que se passa nas escolas; a segunda de pais e
educadores que reagem contra o conteúdo do programa,
que dizem que é agressivo e pouco adequado para
estar num horário familiar, ao domingo à tarde.
Mas o programa também passa durante a semana. É
nesses dias que muitos dos meninos da Escola Básica
do 1.º Ciclo Leão de Arroios, em Lisboa, vêem. No
recreio, rodeiam os repórteres do PÚBLICO e gritam
os nomes dos seus wrestlers (lutadores) preferidos.
As meninas, atentas, vão soletrando os nomes, para
que fiquem bem escritos: John Cena, Batista,
Undertaker, Triple H... Imediatamente as conversas
se cruzam: "Eu gosto mais do Cena. Ele é um rapper.
Eu tenho o disco!", "Eu, é do Edge, já tenho um
boneco do Batista", "O Boogeyman tem um ar terrível!
Mas é giro."
O wrestling é mais do que o que passa na televisão,
são as T-shirts; os bonecos; os jogos para a
Playstation; os espectáculos no Pavilhão Atlântico,
em Lisboa; as imagens dos lutadores preferidos
estampadas nos bolos de anos... Os miúdos gostam e
desdramatizam. "Eles não se magoam", explica
Eduardo, nove anos, que confessa que vê às
escondidas, porque os pais "têm medo que tenha
sonhos maus".
Proibidos de brincar
na escola
No recreio da escola Leão de Arroios, em Lisboa,
joga-se futebol no intervalo grande da manhã. A bola
voa e, enquanto alguém a vai buscar, Ricardo agarra
Tiago pelo pescoço e simula que o vai fazer voar por
cima do seu ombro. O movimento é desajeitado, mas
rápido, os dois rapazes desequilibram-se e Tiago
ainda escorrega, mas nenhum cai. "Estava a tentar
fazer um RKO [uma manobra do wrestling]", admite
Ricardo, de nove anos.
"Uma vez, o Fábio deu um soco ao Paulo e deitou
sangue... E era a brincar", conta João, de dez anos,
do 4.º ano. Por isso, a coordenadora da escola,
Zilda Mota, e as professoras disseram que os meninos
estão proibidos de brincar, revela Beatriz, nove
anos, que também gosta de ver os lutadores. "Os meus
pais deixam-me ver, desde que eu não repita. Eles
dizem que aquilo é perigoso, mas que não é nada
importante. Se eu vir não faz mal", conta.
Apenas Hugo, de dez anos, tem a certeza que "aquilo
é a sério e que os wrestlers se magoam". Os
restantes acham que "é tudo a fingir, uma
brincadeira". Mas não é bem assim, adverte o lutador
português Bruno Brito (ver texto nestas páginas).
A APSI está preocupada com os acidentes que resultam
destas brincadeiras. "Se o bullying é feito com
maldade, estas brincadeiras não têm a intenção de
magoar, mas são agressões, porque o wrestling incita
à violência", declara Helena Cardoso de Menezes,
presidente da associação. Se os lutadores sabem o
que fazem, os rapazes - do 1.º ao 9.º ano - não, e
ficam surpreendidos com a sua própria força,
continua.
"Não são mais graves
por milímetros"
Ao hospital de Évora chegam crianças e adolescentes
com traumatismos cranianos, lesões e ferimentos
provocados pela mesma brincadeira, revela Rui
Rosado, cirurgião pediátrico e membro da direcção
nacional da APSI. "A situação começou a chamar-me a
atenção, há casos que não são mais graves por
milímetros. São chamados movimentos caóticos, que
podem ter efeitos imprevisíveis", define.
São sobretudo os rapazes, entre os dez e os 13 anos,
que chegam às urgências. "Se é assim em Évora, o
mesmo se deve passar em todo o país", calcula.
Há dois fins-de-semana que Carlos Simões se zanga
com o filho de sete anos e com a mulher, por causa
do programa que passa ao domingo à tarde. Na
família, o vereador da câmara da Golegã está isolado
nos seus argumentos. Por um lado, o filho quer
assistir porque os amigos vêem. Por outro, a mulher
teme que o rapaz não se integre na escola porque não
vê as mesmas coisas que os outros. "Eu prefiro que
não brinque a que apareça em casa com o pescoço
partido", reage o pai.
Carlos Simões sabe de mais casos de crianças que se
magoam, no concelho onde vive. Há uma semana, na
escola do filho, um menino tinha a cara pisada e a
marca de uma bota na testa porque "andou a brincar
ao wrestling". O pai está preocupado com o horário a
que dá o programa: as crianças vêem ao domingo e no
dia seguinte, na escola, o "disparate é total".
A coordenadora da básica Leão de Arroios, Zilda
Mota, já proibiu as crianças de brincar ao
wrestling. "Eles gostam de fazer o que vêem na
televisão. Não posso aceitar que os órgãos de
comunicação social digam que é isto que as crianças
querem ver, quando não dão outras alternativas. Se
derem coisas boas, elas aprendem a gostar doutras
coisas."