Público - 21 Jan 07

 

WRESTLING

Ricardo agarra o amigo pelo pescoço e simula que vai atirá-lo ao chão. Têm nove anos e estão a brincar ao wrestling no pátio da escola. Imitam o que vêem na televisão. Não são os únicos, há miúdos de todas as idades, do 1.º ao 9.º ano, que brincam sem medir forças e por vezes vão parar aos hospitais. Por Bárbara Wong

 

Começam a chegar às urgências dos hospitais com dores de barriga, traumatismos cranianos, narizes fracturados. São rapazes agredidos pelos colegas. Não são vítimas de bullying, mas de wrestling. Ou seja, não se magoaram devido a violência e coacção entre colegas, mas sim por causa de brincadeiras em que imitam o que vêem na televisão.
Os ídolos destes rapazes são homens musculados com ares agressivos e fatos ridículos, que, numa arena rodeada de um público ululante, gritam e praticam uma espécie de luta greco-romana, mas à americana.
O fenómeno do wrestling não é novo, mas está a chegar aos recreios portugueses, sobretudo depois de o programa de televisão ter começado, no início do mês, a passar na SIC generalista - desde 2004 que vai para o ar na SIC Radical.
A Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI) e a Associação de Consumidores dos Media já receberam queixas. A primeira de pais preocupados com o que se passa nas escolas; a segunda de pais e educadores que reagem contra o conteúdo do programa, que dizem que é agressivo e pouco adequado para estar num horário familiar, ao domingo à tarde.
Mas o programa também passa durante a semana. É nesses dias que muitos dos meninos da Escola Básica do 1.º Ciclo Leão de Arroios, em Lisboa, vêem. No recreio, rodeiam os repórteres do PÚBLICO e gritam os nomes dos seus wrestlers (lutadores) preferidos.
As meninas, atentas, vão soletrando os nomes, para que fiquem bem escritos: John Cena, Batista, Undertaker, Triple H... Imediatamente as conversas se cruzam: "Eu gosto mais do Cena. Ele é um rapper. Eu tenho o disco!", "Eu, é do Edge, já tenho um boneco do Batista", "O Boogeyman tem um ar terrível! Mas é giro."
O wrestling é mais do que o que passa na televisão, são as T-shirts; os bonecos; os jogos para a Playstation; os espectáculos no Pavilhão Atlântico, em Lisboa; as imagens dos lutadores preferidos estampadas nos bolos de anos... Os miúdos gostam e desdramatizam. "Eles não se magoam", explica Eduardo, nove anos, que confessa que vê às escondidas, porque os pais "têm medo que tenha sonhos maus".

Proibidos de brincar
na escola
No recreio da escola Leão de Arroios, em Lisboa, joga-se futebol no intervalo grande da manhã. A bola voa e, enquanto alguém a vai buscar, Ricardo agarra Tiago pelo pescoço e simula que o vai fazer voar por cima do seu ombro. O movimento é desajeitado, mas rápido, os dois rapazes desequilibram-se e Tiago ainda escorrega, mas nenhum cai. "Estava a tentar fazer um RKO [uma manobra do wrestling]", admite Ricardo, de nove anos.
"Uma vez, o Fábio deu um soco ao Paulo e deitou sangue... E era a brincar", conta João, de dez anos, do 4.º ano. Por isso, a coordenadora da escola, Zilda Mota, e as professoras disseram que os meninos estão proibidos de brincar, revela Beatriz, nove anos, que também gosta de ver os lutadores. "Os meus pais deixam-me ver, desde que eu não repita. Eles dizem que aquilo é perigoso, mas que não é nada importante. Se eu vir não faz mal", conta.
Apenas Hugo, de dez anos, tem a certeza que "aquilo é a sério e que os wrestlers se magoam". Os restantes acham que "é tudo a fingir, uma brincadeira". Mas não é bem assim, adverte o lutador português Bruno Brito (ver texto nestas páginas).
A APSI está preocupada com os acidentes que resultam destas brincadeiras. "Se o bullying é feito com maldade, estas brincadeiras não têm a intenção de magoar, mas são agressões, porque o wrestling incita à violência", declara Helena Cardoso de Menezes, presidente da associação. Se os lutadores sabem o que fazem, os rapazes - do 1.º ao 9.º ano - não, e ficam surpreendidos com a sua própria força, continua.

"Não são mais graves
por milímetros"
Ao hospital de Évora chegam crianças e adolescentes com traumatismos cranianos, lesões e ferimentos provocados pela mesma brincadeira, revela Rui Rosado, cirurgião pediátrico e membro da direcção nacional da APSI. "A situação começou a chamar-me a atenção, há casos que não são mais graves por milímetros. São chamados movimentos caóticos, que podem ter efeitos imprevisíveis", define.
São sobretudo os rapazes, entre os dez e os 13 anos, que chegam às urgências. "Se é assim em Évora, o mesmo se deve passar em todo o país", calcula.
Há dois fins-de-semana que Carlos Simões se zanga com o filho de sete anos e com a mulher, por causa do programa que passa ao domingo à tarde. Na família, o vereador da câmara da Golegã está isolado nos seus argumentos. Por um lado, o filho quer assistir porque os amigos vêem. Por outro, a mulher teme que o rapaz não se integre na escola porque não vê as mesmas coisas que os outros. "Eu prefiro que não brinque a que apareça em casa com o pescoço partido", reage o pai.
Carlos Simões sabe de mais casos de crianças que se magoam, no concelho onde vive. Há uma semana, na escola do filho, um menino tinha a cara pisada e a marca de uma bota na testa porque "andou a brincar ao wrestling". O pai está preocupado com o horário a que dá o programa: as crianças vêem ao domingo e no dia seguinte, na escola, o "disparate é total".
A coordenadora da básica Leão de Arroios, Zilda Mota, já proibiu as crianças de brincar ao wrestling. "Eles gostam de fazer o que vêem na televisão. Não posso aceitar que os órgãos de comunicação social digam que é isto que as crianças querem ver, quando não dão outras alternativas. Se derem coisas boas, elas aprendem a gostar doutras coisas."