Em 1974, a seguir ao 25 de Abril,
um grupo de mulheres reuniu-se no alto do Parque
Eduardo VII para – segundo foi anunciado – queimar
soutiens e outros adereços femininos. Os homens
acorreram em massa, na óbvia expectativa de verem as
mulheres despirem-se e deitarem os seus próprios
soutiens na fogueira. Assim, o que deveria ser uma
manifestação feminista acabou por desembocar
exactamente no contrário: numa concentração de
machos voyeurs. Não me recordo de como a coisa
acabou, mas creio que meteu intervenção da Polícia.
Apesar deste mau arranque, o
fervor das feministas portuguesas (lideradas pelas
célebres ‘três Marias’) não esmoreceu. A partir daí,
empenharam-se em destruir todos os símbolos
femininos, considerados sinais de ‘escravidão’. Os
cabelos compridos eram identificados com as
mulheres? Pois cortem-se os cabelos! As saias eram
usadas pelas mulheres? Pois vistam-se calças! Os
sapatos de salto alto só eram calçados por mulheres?
Pois acabe-se com os saltos e calcem-se mocassins! E
assim por diante. Tudo o que, de perto ou de longe,
cheirasse a ‘feminino’, era imediatamente banido e
lançado à fogueira. Vivia-se o renascer do espírito
do auto-de-fé.
Embora na época eu não tenha
reflectido muito sobre o tema, logo me pareceu haver
alguma coisa de errado nessa atitude. Mas só mais
tarde percebi o porquê. O feminismo assentava num
equívoco.
Destruindo os soutiens, cortando os cabelos,
abolindo as saias, pondo de lado os saltos altos, as
feministas começaram a parecer-se cada vez mais com
os homens. Para distinguir certas mulheres era
preciso olhar duas vezes – e o que nos fazia
desconfiar não estarmos perante um homem era apenas,
normalmente, a reduzida estatura.
Essa atitude de imitação da
imagem masculina levou muitas mulheres a pensar uma
coisa terrível: que, para terem os mesmos direitos
dos homens, tinham de se parecer com eles. Dito de
outra maneira: se as mulheres persistissem em ‘ser
elas’ e continuassem a usar cabelo comprido,
soutien, saias e saltos altos, nunca poderiam
aspirar à igualdade.
Ora a verdadeira batalha era
outra. O que a maioria das mulheres queria era ter
os mesmos direitos e oportunidades dos homens não
tendo de abdicar dos seus símbolos nem sendo
obrigada a imitar ninguém. As mulheres queriam poder
ser vistas no mesmo plano dos homens usando o
penteado que entendessem, pondo o modelo de soutien
que quisessem, vestindo saia comprida ou curta
conforme lhes apetecesse, calçando sapatos de salto
mais baixo ou mais alto, mais grosso ou mais fino,
consoante as circunstâncias.
Em resumo: as mulheres queriam ser olhadas em pé de
igualdade com os homens não deixando de ser
mulheres, não renegando a sua condição, não se
tornando travestis.
No discurso feminista, para lá
daquele equívoco, existiam muitas contradições. Por
exemplo: a exigência de quotas para as mulheres na
política. As quotas só fazem sentido se se
considerar que mulheres e homens são diferentes – ou
seja, que têm sensibilidades diferentes, que podem
dar contributos diferentes, que introduzem no debate
político temas diferentes. Se homens e mulheres
fossem iguais, se pensassem do mesmo modo e
chegassem às mesmas conclusões, que vantagem haveria
na presença de mais ou menos mulheres na política?
Assim, reivindicar por um lado quotas e por outro
dizer que entre homens e mulheres não havia qualquer
diferença era destituído de sentido.
Mas, nesta luta das feministas
pela indiferenciação dos sexos, havia uma questão
inultrapassável: a maternidade. Se os cabelos, as
saias, os soutiens, os saltos se podiam abandonar,
não havia maneira de contornar o facto de serem as
mulheres quem gera os filhos. Aqui não havia volta a
dar – não havia maneira de esconder a diferença. A
maternidade tornou-se assim o último elo que
‘agarrava’ a mulher à sua condição feminina. A
última barreira. O derradeiro obstáculo à libertação
completa da mulher. É daí que nasce a luta a favor
do aborto. Se as mulheres não podiam deixar de ser
elas a ter os filhos, ao menos que pudessem decidir
se queriam ou não tê-los – não podendo ser
condenadas se decidissem abortar.
Isto explica a militância das
feministas e suas herdeiras a favor do aborto. Elas
batem-se hoje pelo aborto como se batiam há 30 anos
pela rejeição dos soutiens: são tudo símbolos da
condição feminina, ou seja, símbolos de ‘servidão’.
Repare-se que muitas feministas não quiseram ter
filhos. Consideraram que isso ‘reduzia’ a mulher à
condição de mãe. Diminuía-a. Impedia a sua
emancipação. As mulheres – diziam – só conseguiriam
estar em pé de igualdade com os homens quando se
libertassem de tudo aquilo que poderia fazer a
diferença. E os filhos eram o último reduto da
diferença.
Trinta anos depois da queima dos
soutiens no Parque Eduardo VII, percebo melhor por
que tinha a intuição de que o feminismo assentava
sobre um erro. As feministas queriam que homens e
mulheres fossem o mesmo, vestissem as mesmas roupas,
tivessem as mesmas conversas, lessem os mesmos
livros, sentissem da mesma maneira, tivessem os
mesmos gostos, reagissem da mesma forma.
Ora, como estes 30 anos provaram,
as mulheres desejam exactamente o oposto: ser
diferentes, vestir-se doutra maneira, ter outros
gostos, reagir doutra forma. E é nessa diferença que
reside o mistério, é daí que nasce o encanto, a
atracção, o desejo. Já se pensou na sensaboria que
seria o mundo se homens e mulheres fossem iguais?
Em duas frases, o ‘equívoco do
feminismo’ pode definir-se assim: as feministas
queriam imitar os homens para terem os mesmos
direitos; mas a dignidade das mulheres defende-se
exactamente ao contrário: exigindo os mesmos
direitos sem terem de renegar a sua condição.