Público - 14 Jan 07

 

O Fisco, o Director-geral e a Política
António Barreto

 

De repente, criou-se um problema! Sem que nada o permitisse prever, sem que houvesse razões evidentes e conhecidas, o cargo de Director-geral dos Impostos foi posto em causa. Não tenho jeito, nem gosto, para teorias conspirativas, mas não deixo de estranhar a maneira intempestiva e inoportuna como o problema surgiu no espaço público. Paulo Macedo, actual titular, só termina o seu contrato dentro de quatro ou cinco meses, mas as especulações multiplicam-se. Quer ele ficar ou ir-se embora? Não se sabe. Quer o governo renovar o seu mandato ou deseja substituí-lo? O seu vencimento (cerca de 23.000 euros) é excessivo ou é justo? Terá de ser pago conforme à tabela da Administração Pública e ficar abaixo dos 5.000 euros, ou poderá continuar a receber o montante contratado? É legítimo que um funcionário, mesmo quando contratado no mercado livre, aufira vencimentos diferentes e superiores aos de todos os outros servidores do Estado? É aceitável que um responsável pela alta administração tenha vencimentos de acordo com os resultados obtidos? Poderá a lei em vigor, que estipula que ninguém pode ganhar mais do que o Primeiro-ministro, ser contornada, eventualmente alterada? Deverá alterar-se a lei apenas por um motivo concreto e por causa de uma pessoa? Como se pode ver, o problema é sério. E não se pode reduzir a questões acessórias, como sejam a proveniência profissional da pessoa em causa (um banco privado) ou o facto de ele ter mandado rezar uma missa. Além disso, convém não esquecer que o momento é deveras delicado. Com efeito, assiste-se, há pouco tempo, a um crescendo notável das acções de fiscalização e inspecção, assim como de inquérito e instrução de processos por evasão e fraude. É também agora que os projectos de João Cravinho, tendentes a combater a corrupção, vão para a sarjeta, seja porque ele se vai embora, seja porque o governo os não aceita. É nestas águas agitadas que ganha relevo o debate sobre a substituição deste alto funcionário.

TANTO QUANTO NOS É POSSÍVEL avaliar, Paulo Macedo tem uma invejável folha de serviços. Apertou a malha fiscal, tendo reduzido as taxas de evasão. Obteve receitas consideráveis para o Estado, não por subida de impostos, a via preferida pelos políticos, mas por aumento da eficácia fiscal. Trouxe para o Tesouro mais de dois mil milhões de euros em cobranças coercivas, uma das dores de cabeça tradicionais da administração fiscal. Lançou várias operações de exame e fiscalização dos sectores mais delicados, da banca aos off shores, do futebol à construção civil, da informática às obras públicas. Não só parece ter contido a evasão e a fraude, mas tudo leva a crer que tenha consideravelmente reduzido uma e outra. Deu ânimo aos funcionários da administração fiscal, ao mesmo tempo que parece ter contido a complacência, alguns dizem mesmo a corrupção, que se manifestava naqueles serviços. Mais ainda, este director-geral sobreviveu a três governos, outros tantos primeiros-ministros e quatro ministros das finanças, facto relevante, pois demonstrou que a independência da alta Administração Pública era possível. Nunca saberemos, evidentemente, se esta duração se ficou a dever à timidez dos governos, ao interesse em aumentar as receitas ou à honesta convicção de que este técnico era o útil e o adequado. Os motivos são secundários: o resultado é um feito.

O QUE FEZ COM QUE ESTE TEMA tenha ganho actualidade é um mistério. É só o governo a tentar fazer uma demonstração da sua autoridade e a garantir que é ele que manda e que os directores-gerais são meros executantes? É o partido a estrebuchar? São os outros directores-gerais a vociferar contra a desigualdade? São os sindicatos a fazer as suas habituais pressões? Serão os grandes interesses económicos e financeiros, amigos da frouxidão fiscal, a procurar influenciar? Ou será o próprio director-geral a querer ir embora? Não se conhece a resposta, mas podem recear-se os próximos desenvolvimentos. Com a prática dos últimos anos e com a lei dos cargos ditos de "confiança política", que é a consagração legal do favoritismo partidário, o cepticismo é mais realista.

A "QUESTÃO FISCAL", EM PORTUGAL, tem muitos e diversos aspectos. Injustiça na sua formulação. Incompetência na sua administração. Duas medidas e dois pesos de acordo com os visados. Corrupção. Falta de coragem política para assumir certas posições e tomar certas medidas. Enviesamento diante dos interesses mais poderosos. Muitas tentativas, umas sérias outras não, foram feitas, ao longo das últimas décadas, para reformar a fiscalidade. A maior parte não teve efeitos relevantes. Recordo uma observação repetida por Medina Carreira: o problema essencial não é o das leis, mas sim o da "máquina fiscal". Ora, com Paulo Macedo, tudo leva a crer que esse nó estava em vias de resolução, ou, pelo menos, muito se tinha avançado. Persistem outros problemas, como o da justiça fiscal ou da eficácia da administração judicial, mas, com uma "máquina fiscal" eficaz e honesta, o resto era possível.

ASSIM DISCUTIDA, A DESPROPÓSITO, a sua substituição, o primeiro resultado é evidente: o ainda Director-geral perde condições imediatas para o exercício do seu mandato. Perde autoridade e fica frágil. Por outro lado, fica criado um daqueles dilemas ridículos que envenenam tantas vezes a vida pública. Se é mantido, ganha ele e perde o governo. Se é substituído, perde ele e o governo será acusado de incompetência e parcialidade.

ESTAMOS, MAIS UMA VEZ, NUMA destas situações em que o disparate chama o disparate. A resolução do problema, a supor que terá um bom desfecho, não se fará sem contorcionismo. Como é evidente, não é aceitável que uma lei não se cumpra. Assim, ou se muda a lei ou se substitui o senhor. Mas não é razoável que se mude a lei por causa de uma pessoa ou de um cargo. Por outro lado, não é compreensível que o governo esteja proibido de contratar livremente, no mercado, os técnicos e dirigentes que entenda adequados às necessidades. Finalmente, é absurdo que um dirigente da administração, que deu provas indiscutíveis de seriedade e competência, seja substituído por razões políticas, partidárias ou pessoais inconfessáveis.

ESTÃO DIANTE DE NÓS ALGUNS DOS velhos fantasmas. A isenção da Administração Pública é figura de retórica. O apetite partidário continua vigoroso. A voracidade dos interesses permanece robusta. A persistência na luta contra a fraude e a corrupção é reduzida. Este caso do director-geral dos impostos é, a este título, exemplar. A decisão vai mostrar, sem equívocos, se o governo está disposto, num organismo sensível como este, a cortar ou a conviver com esses fantasmas.