O Fisco, o Director-geral e a Política António Barreto
De repente, criou-se um problema! Sem que nada o
permitisse prever, sem que houvesse razões evidentes
e conhecidas, o cargo de Director-geral dos Impostos
foi posto em causa. Não tenho jeito, nem gosto, para
teorias conspirativas, mas não deixo de estranhar a
maneira intempestiva e inoportuna como o problema
surgiu no espaço público. Paulo Macedo, actual
titular, só termina o seu contrato dentro de quatro
ou cinco meses, mas as especulações multiplicam-se.
Quer ele ficar ou ir-se embora? Não se sabe. Quer o
governo renovar o seu mandato ou deseja
substituí-lo? O seu vencimento (cerca de 23.000
euros) é excessivo ou é justo? Terá de ser pago
conforme à tabela da Administração Pública e ficar
abaixo dos 5.000 euros, ou poderá continuar a
receber o montante contratado? É legítimo que um
funcionário, mesmo quando contratado no mercado
livre, aufira vencimentos diferentes e superiores
aos de todos os outros servidores do Estado? É
aceitável que um responsável pela alta administração
tenha vencimentos de acordo com os resultados
obtidos? Poderá a lei em vigor, que estipula que
ninguém pode ganhar mais do que o Primeiro-ministro,
ser contornada, eventualmente alterada? Deverá
alterar-se a lei apenas por um motivo concreto e por
causa de uma pessoa? Como se pode ver, o problema é
sério. E não se pode reduzir a questões acessórias,
como sejam a proveniência profissional da pessoa em
causa (um banco privado) ou o facto de ele ter
mandado rezar uma missa. Além disso, convém não
esquecer que o momento é deveras delicado. Com
efeito, assiste-se, há pouco tempo, a um crescendo
notável das acções de fiscalização e inspecção,
assim como de inquérito e instrução de processos por
evasão e fraude. É também agora que os projectos de
João Cravinho, tendentes a combater a corrupção, vão
para a sarjeta, seja porque ele se vai embora, seja
porque o governo os não aceita. É nestas águas
agitadas que ganha relevo o debate sobre a
substituição deste alto funcionário.
TANTO QUANTO NOS É POSSÍVEL avaliar, Paulo Macedo
tem uma invejável folha de serviços. Apertou a malha
fiscal, tendo reduzido as taxas de evasão. Obteve
receitas consideráveis para o Estado, não por subida
de impostos, a via preferida pelos políticos, mas
por aumento da eficácia fiscal. Trouxe para o
Tesouro mais de dois mil milhões de euros em
cobranças coercivas, uma das dores de cabeça
tradicionais da administração fiscal. Lançou várias
operações de exame e fiscalização dos sectores mais
delicados, da banca aos off shores, do futebol à
construção civil, da informática às obras públicas.
Não só parece ter contido a evasão e a fraude, mas
tudo leva a crer que tenha consideravelmente
reduzido uma e outra. Deu ânimo aos funcionários da
administração fiscal, ao mesmo tempo que parece ter
contido a complacência, alguns dizem mesmo a
corrupção, que se manifestava naqueles serviços.
Mais ainda, este director-geral sobreviveu a três
governos, outros tantos primeiros-ministros e quatro
ministros das finanças, facto relevante, pois
demonstrou que a independência da alta Administração
Pública era possível. Nunca saberemos,
evidentemente, se esta duração se ficou a dever à
timidez dos governos, ao interesse em aumentar as
receitas ou à honesta convicção de que este técnico
era o útil e o adequado. Os motivos são secundários:
o resultado é um feito.
O QUE FEZ COM QUE ESTE TEMA tenha ganho actualidade
é um mistério. É só o governo a tentar fazer uma
demonstração da sua autoridade e a garantir que é
ele que manda e que os directores-gerais são meros
executantes? É o partido a estrebuchar? São os
outros directores-gerais a vociferar contra a
desigualdade? São os sindicatos a fazer as suas
habituais pressões? Serão os grandes interesses
económicos e financeiros, amigos da frouxidão
fiscal, a procurar influenciar? Ou será o próprio
director-geral a querer ir embora? Não se conhece a
resposta, mas podem recear-se os próximos
desenvolvimentos. Com a prática dos últimos anos e
com a lei dos cargos ditos de "confiança política",
que é a consagração legal do favoritismo partidário,
o cepticismo é mais realista.
A "QUESTÃO FISCAL", EM PORTUGAL, tem muitos e
diversos aspectos. Injustiça na sua formulação.
Incompetência na sua administração. Duas medidas e
dois pesos de acordo com os visados. Corrupção.
Falta de coragem política para assumir certas
posições e tomar certas medidas. Enviesamento diante
dos interesses mais poderosos. Muitas tentativas,
umas sérias outras não, foram feitas, ao longo das
últimas décadas, para reformar a fiscalidade. A
maior parte não teve efeitos relevantes. Recordo uma
observação repetida por Medina Carreira: o problema
essencial não é o das leis, mas sim o da "máquina
fiscal". Ora, com Paulo Macedo, tudo leva a crer que
esse nó estava em vias de resolução, ou, pelo menos,
muito se tinha avançado. Persistem outros problemas,
como o da justiça fiscal ou da eficácia da
administração judicial, mas, com uma "máquina
fiscal" eficaz e honesta, o resto era possível.
ASSIM DISCUTIDA, A DESPROPÓSITO, a sua substituição,
o primeiro resultado é evidente: o ainda
Director-geral perde condições imediatas para o
exercício do seu mandato. Perde autoridade e fica
frágil. Por outro lado, fica criado um daqueles
dilemas ridículos que envenenam tantas vezes a vida
pública. Se é mantido, ganha ele e perde o governo.
Se é substituído, perde ele e o governo será acusado
de incompetência e parcialidade.
ESTAMOS, MAIS UMA VEZ, NUMA destas situações em que
o disparate chama o disparate. A resolução do
problema, a supor que terá um bom desfecho, não se
fará sem contorcionismo. Como é evidente, não é
aceitável que uma lei não se cumpra. Assim, ou se
muda a lei ou se substitui o senhor. Mas não é
razoável que se mude a lei por causa de uma pessoa
ou de um cargo. Por outro lado, não é compreensível
que o governo esteja proibido de contratar
livremente, no mercado, os técnicos e dirigentes que
entenda adequados às necessidades. Finalmente, é
absurdo que um dirigente da administração, que deu
provas indiscutíveis de seriedade e competência,
seja substituído por razões políticas, partidárias
ou pessoais inconfessáveis.
ESTÃO DIANTE DE NÓS ALGUNS DOS velhos fantasmas. A
isenção da Administração Pública é figura de
retórica. O apetite partidário continua vigoroso. A
voracidade dos interesses permanece robusta. A
persistência na luta contra a fraude e a corrupção é
reduzida. Este caso do director-geral dos impostos
é, a este título, exemplar. A decisão vai mostrar,
sem equívocos, se o governo está disposto, num
organismo sensível como este, a cortar ou a conviver
com esses fantasmas.