Ao contrário da actual lei, que reconhece haver,
desde o princípio, dois bens jurídicos em causa, a
vida da mãe e a do bebé que nela começou a
desenvolver-se, a alteração proposta determina que,
até às dez semanas, só a primeira dessas vidas
existe e tem direito a protecção
Estamos à beira de um novo
referendo sobre a legalização do aborto e importa
conhecer bem a natureza da mudança proposta para que
todos opinemos segundo a nossa consciência, sem nos
ensarilharmos em chavões simplórios e gritarias
irracionais.
Ao contrário da actual lei, que reconhece haver,
desde o princípio, dois bens jurídicos em causa, a
vida da mãe e a do bebé que nela começou a
desenvolver-se, a alteração proposta determina que,
até uma determinada data de gestação, só a primeira
dessas vidas existe e tem direito a protecção. O
embrião com menos de 10 semanas pura e simplesmente
desaparece da ordem jurídica, como se fosse mera
parte do corpo da mulher sobre a qual esta pode
dispor como entender. A partir daí, no entanto, a
lei continuará a catalogar como crime o aborto
provocado, perseguindo os seus autores: para usar um
dos chavões mais repetidos, a lei continuará a
"mandar mulheres para a prisão"...
Se deixar de haver duas vidas em consideração até às
10 semanas, o aborto provocado dentro deste prazo
tenderá a ser uma operação rotineira nos hospitais,
um entre tantos actos "médicos". Do pessoal de saúde
esperar-se-á que aconselhe as pacientes sobre a
forma mais limpa e segura de matar e eliminar os
restos do embrião que lhes cresce no ventre e o
Estado deixará de sentir-se obrigado a averiguar
eventuais limitações da autonomia e liberdade de
decisão da grávida, tantas vezes fragilizada e
enredada em dramas que lhe turvam a clarividência.
Estará a mudança proposta de acordo com o espírito
do tempo? Contribuirá ela para a sociedade mais
feliz, mais respeitadora do outro, mais solidária e
mais desenvolvida que queremos construir? O que quer
que diga a lei, o fundo da questão incomoda todos os
que se deixam interrogar por este mistério frágil
que é a vida: será razoável defender que "aquilo"
que se desenvolve a um ritmo alucinante num útero
não é uma vida humana diferente e irrepetível? Os
avanços da ciência tornam cada vez mais difícil
defender que não e com isto concordam muitos dos que
estão tentados a responder "sim" no referendo, por
uma questão de ajustamento das leis a práticas
sociais ou por sublimação de piedosos sentimentos de
não penalização de quem aborta, ou promove o aborto,
ou faz dinheiro a praticar abortos.
E porque é que a lei a referendo considera que é às
10 semanas, e não às 9 ou 12, que passa a haver uma
segunda vida com direito a protecção legal? Acontece
alguma coisa, em determinada fase do desenvolvimento
do embrião, que lhe mude inequivocamente a
substância e o transforme em vida humana? Um
qualquer sopro divino? Ou é o tamanho do embrião que
conta? Ou o aspecto? Ou a ideia, sempre provisória,
que temos sobre a dor que ele pode sentir? O ser
humano distingue-se dos restantes mamíferos por não
ver apenas com os olhos, por também ser capaz de
"ver" através da ciência, da razão, da imaginação,
das convicções. Ora, ainda que os nossos olhos não
vislumbrem mais do que um amontoado de células,
todos sabemos que há uma nova vida desde a fusão do
óvulo com o espermatozóide.
Essa capacidade humana de não ver apenas o que está
à frente do nariz tem levado as sociedades
desenvolvidas a penalizar e criminalizar, com
crescente rigor, as agressões à natureza, à
biodiversidade, à vida animal e vegetal, mesmo
quando não temos certezas sobre os efeitos últimos
do que fazemos. Será razoável, neste tempo, que
deixem de ser crime a decisão e a acção de
voluntariamente interromper uma vida,
inequivocamente humana, ainda para mais quando a
tecnologia nos permite observar cada vez melhor que
não há nenhuma descontinuidade essencial desde a
concepção até à morte natural de todos os
indivíduos? Durante o século XX, quando a
liberalização do aborto ganhou terreno em muitas
nações e chegou a tornar-se política de Estado em
países totalitários, talvez houvesse a desculpa de
que não se via ali vida humana. Hoje, isso é
inaceitável!
E quem nos diz que um dia os países que
liberalizaram o aborto não vão voltar a
proscrevê-lo? Se isso acontecer, como é mais do que
possível, o repúdio da "solução final" do passado,
que é o aborto, não se deverá nem a razões
religiosas nem demográficas nem utilitaristas. Será
antes o corolário de uma forma nova de olhar para o
Mundo que começou a nascer depois dos positivismos
dos anos 50 e 60 e que se caracteriza por uma
cultura de responsabilidade e de respeito pela
Natureza, pela assunção da intrínseca debilidade de
todo o ser humano e pela necessidade de pôr sempre a
vida acima de tudo. Estará Portugal condenado a
encetar, no século XXI, o caminho por que outros
enveredaram no passado, quando até há sinais de que
se está a evoluir em sentido inverso? Não aprendemos
nada?!
Lutar contra a instrumentalização da vida humana
será uma das grandes causas mobilizadoras dos novos
homens e mulheres de boa-vontade, qualquer que seja
a sua matriz política, religiosa ou cultural. É esse
desafio apaixonante que anima o combate dos que se
opõem à liberalização do aborto. Mandatário do Grupo
Cívico em constituição "Aborto a Pedido? NÃO!"