Público - 27 Jan 06

Não posso adiar

Pedro Strecht

Faz falta uma boa avaliação psicológica a todos os alunos que entram para a escolaridade obrigatória, entre os 5 e os 6 anos, tal e qual como nos rastreios auditivos ou oftalmológicos

"Insucesso escolar atinge 16 em cada 100 alunos" ou "Todos os concelhos do país com média inferior a três no exame de Matemática do 9.º ano" foram títulos recentes nos órgãos de comunicação social, que voltaram a alertar para as enormes dificuldades de aprendizagem das nossas crianças e adolescentes, que assim tornam sombrio o diagnóstico actual e as perspectivas futuras (sobretudo as de uma boa inserção socioprofissional) bastante complicadas, leia-se, a necessitarem de uma actuação rápida, sob pena de sermos meros espectadores de evoluções escolares muito negativas.
De facto, segundo dados revelados recentemente, em 2003/04, cerca de 223.676 alunos não transitaram de ano, no ensino básico e secundário, percentagem em nada diferente do que já se passava na década de 90 do séc. XX, ou seja, sem registo de melhoras realmente significativas. Quando se observa o panorama geral das retenções por ano de escolaridade, sobressaem ainda outros dados dignos de atenção, nomeadamente aqueles que apontam para o facto de que os que registam maiores percentagem de reprovações serem os chamados anos de transição (5.º, 7.º e 10.º anos), sendo o 7.º ano o mais penalizado, com 22,8 por cento de chumbos. Depois, destaca-se ainda o facto de, logo no 2.º ano (e é porque no final do 1.º ano todos transitam...), se registar um número de 12,3 por cento de retenções.
Assim, se repararmos bem, esta é uma realidade muito pesada para não continuar a merecer todo o investimento de um país que quer crescer, valorizar-se, modernizar-se e, sobretudo, que deveria preocupar-se por criar condições para que as gerações futuras venham a ter melhor formação, sejam mais cultas, e apresentem, em resumo, melhores indicadores de um certo bem-estar psíquico e social. Seremos capazes? Certamente que sim, desde que existam respostas prioritárias para estes problemas e que estas partam de um verdadeiro conhecimento das suas causas profundas; nesse campo, a pedopsiquiatria pode dar também o seu contributo, se nos detivermos nas componentes emocionais que lhes servem de base.
A questão do insucesso escolar, como muitos professores tão bem sabem, liga-se a problemas que transcendem a mera parte curricular, da organização das escolas ou da qualidade dos professores: ela tem cada vez mais que ver com fragilidades psicossociais de muitos alunos que frequentam o nosso sistema de ensino. Perante uma percentagem tão grande de rapazes e raparigas retidos, com muitos a passar por essa experiência mais do que uma vez ao longo da escolaridade obrigatória, há que desde logo perceber que esta não é, pelo menos inicialmente, uma questão de capacidades cognitivas ou intelectuais; é um problema onde se evidencia o peso dos factores emocionais e afectivos, onde se destacam a imaturidade, as estruturas depressivas do funcionamento psíquico (caracterizadas por uma frágil auto-estima), a ausência de uma boa interiorização de regras e limites e, por vezes, uma significativa desorganização do pensamento, todas habitualmente expressas numa forte componente comportamental, onde predominam a agitação, a agressividade, a dificuldade de concentração e perseverança e os progressivos desinteresse, apatia e retirada, num círculo negativo que rapidamente se fecha, pois assim não é possível aparecerem resultados minimamente animadores para o próprio. Por outro lado, todos sabemos bem que não é possível pensar nestas diversas dificuldades sem as englobarmos em aspectos particulares do funcionamento social e familiar de muitos jovens, nomeadamente os que implicam um baixo investimento afectivo nos filhos, uma pouca presença e envolvimento na sua vida escolar, uma boa capacidade de contenção e amparo emocional e uma mínima riqueza cultural que valorize a escola e o trabalho.
Não espanta também que a revelação destas dificuldades seja muito precoce, determinando maus começos (20 por cento dos alunos chumba até ao 4.º ano), que, inevitavelmente, condicionam evoluções frágeis. Sem apoio ou um suporte especial, muitos dos que ficam retidos precocemente voltarão a ser parados mais à frente, no 2.º ou 3.º ciclos, ou, se tal não acontecer, terão carreiras académicas curtas, com abandonos precoces, ou muito fracas, sem perspectivas de equilíbrio futuro. Sabemos bem que são raros os que conseguem recuperar destes maus começos escolares.
Mas, se o problema é precoce, será previsível? Em muitos casos, sim, basta ouvir a impressão dos educadores de infância, que vêem partir para o 1.º ano as suas crianças. É por isso que, entre muitos outros argumentos, faz falta uma boa avaliação psicológica a todos os alunos que entram para a escolaridade obrigatória, entre os 5 e os 6 anos, tal e qual como nos rastreios auditivos ou oftalmológicos. A detecção atempada de fragilidades permitiria traçar planos de suporte igualmente precoces, não deixando milhares de crianças simplesmente entregues à sua má sorte.
É que mesmo a maior percentagem dos que chumbam mais à frente (por exemplo, no 7.º e 8.º anos) iniciou os seus problemas anteriormente e, na entrada na adolescência, pelos 12 a 14 anos, exterioriza claramente falhas já antigas. Perante novos e importantes desafios emocionais, não há capacidade de manter autonomamente uma boa estabilidade individual e social e vemos então desabar edifícios psíquicos demasiado frágeis, que só se mantinham de pé à custa de grande suporte exterior ou em alto esforço interno.
Depois, há a questão central dos anos de transição. Porquê? Uma das mais óbvias respostas é que, nos casos mais complexos, assiste-se a um passar da "batata quente", como a gíria tão bem descreve, para quem está acima, em que a triste lógica é a seguinte: crianças ou adolescentes com dificuldades que ocupam demasiado espaço (físico e mental) em determinadas escolas são literalmente despachadas para outras, numa solução em que se passa por antiguidade ou por desgaste de um corpo docente.
Para outros, temos de recordar que as transições implicam roturas, mudanças, saltos de crescimento maturativo de que só são capazes os que têm estruturas individuais mais sólidas que lhes permitem fazer face, com eficácia, a esses touching points. E, por último, há a questão do envolvimento sociofamiliar. Mesmo sendo um problema com distribuição completamente transversal, não se pode negar o peso das diferentes realidades sociais e suas condicionantes, como bem atesta a lista dos concelhos com piores resultados nos exames de Matemática: Mondim de Basto, Pampilhosa da Serra, Mora, só para referir os três do topo.
Por isso, aprender e progredir na escola é uma questão que "Não posso adiar", como escreveu o poeta António Ramos Rosa, "ainda que a noite pese séculos sobre as costas/ e a aurora indecisa demore/ não posso adiar para outro século a minha vida". Pedopsiquiatra

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