Expresso - 21 Jan 06

A reforma da Segurança Social

António Bagão Félix

O Ministério das Finanças diz que a Segurança Social entra em ruptura, em 2015, mas o dinheiro estará a ir, forte e feio, para a OTA, o TGV, as Scut.

1 É RECORRENTE falar-se da crise da Segurança Social (SS). Basta ler a literatura abundante ao longo das últimas décadas ou o Livro Branco (LB).

Mas - sabe-se lá porquê… - os governantes parecem, agora, ter descoberto o «caminho marítimo para a Índia…» e as televisões abrem telejornais com as grandes «novidades»! As mesmas que deram em 2000 grande destaque à notável afirmação do então PM Guterres de que «estaria garantida a sustentabilidade da SS para os próximos 100 anos» num Governo em que o actual MTSS era então o SESS.

Afinal, os antes defensores extremosos do «statu quo» ou os ignorantes na matéria, são agora os proclamadores serôdios do obituário da SS.

Os diagnósticos estão todos (e bem) feitos. Releia-se, como bom trabalho, o relatório do LB.

Se uma das razões das doenças são os excessos de diagnósticos, quase me atrevo a dizer o mesmo quanto à SS.

Diagnosticar é relativamente fácil, actuar revela-se um caminho bem mais tortuoso e incompreendido. Eu que o diga…

2 Que fazer, então, para ajudar a sustentabilidade da SS, em particular das pensões?

Há analgésicos que atenuam o mal, mas não o saram. São as reformas cosméticas de que me dispenso de falar aqui.

Há, depois, umas benzodiazepinas e antidepressivos que acalmam o doente e adiam, por algum tempo, a inevitabilidade. São as reformas paramétricas. É o caso, entre outros, do tão falado aumento da idade de reforma.

Havendo uma diferença não despicienda entre os 65 anos e a idade média da reforma, é um caminho correcto começar por fazer convergir a norma com a realidade.

Continuar a controlar a invalidez falsa como modo fácil de atingir mais cedo a reforma, penalizar mais as antecipações (e aqui recordo que, logo na aprovação da medida no Governo Guterres se sabia que os 4,5% de penalização eram manifestamente insuficientes) e não ceder a contextos corporativos de idades de reforma «à la carte», são caminhos certos e urgentes.

Além de que é preciso fazer contas: pagar menos pensões aumentando a idade legal de reforma também significa pagar mais subsídio de desemprego num mercado de trabalho muito inelástico (quase sempre mais caro, porque o desemprego significa um aumento da despesa e uma diminuição da receita). E no caso da SS da função pública, aumentar a idade para a reforma é apenas trocar mais tempo de salário por menos tempo de pensão… pago pelo mesmo patrão.

Por fim, há os antibióticos potentes que podem matar o vírus, ainda que a prazo geracional. São as reformas sistémicas.

3 Selecciono, aqui, apenas duas: uma exógena à SS e outra endógena.

A exógena tem a ver com a necessidade da anulação do efeito adverso da demografia. À deterioração do «ratio» de dependência só se pode responder, consistentemente, não com verbalizações e proclamações de fé no futuro, mas com um aumento mais que proporcional da riqueza nacional. Ora, num contexto de moeda única e de globalização, só há um caminho: a melhoria sustentada da produtividade. Por palavras mais directas: se há menos activos a descontar para mais reformados a receber, então o antídoto desta equação passa pelos mesmos activos produzirem mais. Se o adversário directo da SS é agora a demografia, o aliado pode e deve ser a produtividade.

O actual sistema de financiamento também deve ser questionado, pelo menos parcialmente. O «pay as you go» é uma forma de transferência intergeracional que está sujeita a muitos riscos, quase se transformando, para as futuras gerações, num «acto de fé»: «Pray as you go»!

Duas questões se colocam aqui: alterar e/ou diversificar as fontes de financiamento da SS e introduzir crescentes níveis de capitalização na formação da pensão.

Quanto à primeira, evoluiu-se muito e bem nos últimos dez anos: hoje já não são as taxas sobre salários que financiam a solidariedade dos regimes de menor expressão contributiva ou sujeitos a condições de recursos. São os impostos em geral ou consignados como é o caso do IVA social.

Muito se fala acerca do financiamento deixar de incidir sobre salários para o ser sobre o valor acrescentado das empresas. Teoricamente nada tenho contra. Seria até uma forma de não discriminar contra as empresas de mão-de-obra intensiva (embora, em questão de produtividade e incentivo à inovação, organização e tecnologias seja bastante controverso).

Mas sejamos realistas: dissecada pelos especialistas há décadas, nenhum país se atreveu a avançar nesta modificação. E hoje, num contexto de União Europeia, de liberalização de trocas e de moeda única, nenhum país avança se não for numa perspectiva alargada.

4 Última questão (endógena): introduzir regimes complementares em capitalização, ainda que gradualmente. É o que está na LBSS e que teima em não avançar. Estando consciente de alguns inconvenientes, no curto-prazo, da introdução do tecto contributivo, os seus resultados são geracionalmente positivos quer para o Estado, quer para os beneficiários.

Para o Estado, porque considerando a fórmula de pensões em vigor, pouparia recursos. De facto, considerando uma carreira contributiva completa, prova-se, actuarialmente, que se a pessoa enquanto reformada viver, em média, mais de 11,5 anos, a SS perde menos na parte que deixa de receber de contribuições do que poupa na parte que deixa de pagar na pensão. Ora, a esperança de vida aos 65 anos é, actualmente, de 18 anos e a tendência irreversível vai no sentido de aumentar.

Quanto aos beneficiários, a evidência empírica para períodos suficientemente alargados de observação (20 ou 30 anos) mostra que a taxa real efectiva de capitalização das poupanças investidas é superior em cerca de 2% à taxa de crescimento real dos salários e do emprego (que é o factor de rendimento do regime de pura repartição).

É perante tudo isto que nos vemos confrontados. Tenho pena desta matéria ser mais um factor de divisão do que de entendimento imprescindível para o êxito das mudanças. Tive pena, entre outros aspectos, de não ter tido tempo de deixar completamente concluído o processo de «plafonamento» que já poderia estar em funcionamento, cautelosa e gradualmente, para dar frutos plenos a prazo e não comprometer a SS no presente. Mas parece que o actual Governo pôs de parte esta ideia que, aliás, era muito ousada no LBSS coordenado por Correia de Campos, actual colega do MTSS.

5 Por fim, não posso deixar de estranhar alguma actuação errática do Governo.

Em 2015, o MF diz que a SS entra em ruptura (para já não falar da CGA), mas o dinheiro estará a ir, forte e feio, para a OTA, o TGV, as SCUT, etc?

A SS tem de ser mais selectiva ou diferenciadora (no que concordo). Por isso se vai apertar no subsídio de desemprego (muito no caminho do projecto quando estava no Ministério, então diabolizado e contestadíssimo, agora visto como inevitável e suavemente criticado pelos sindicatos), mas facilita-se no subsídio de doença, aumentando novamente para 65% o valor mínimo do subsídio incentivando-se, assim, o absentismo e a quebra de produtividade e no rendimento social de inserção que, por teimosia política, voltou a ser renovado automaticamente ao fim de 12 meses sem necessidade de novas provas de rendimento.

Termino com a adaptação de uma frase de Anatole France, que é uma forma de aviso - a imprevidência dos povos é quase infinita. Mas a dos Governos é perigosamente legal - e uma síntese do que penso necessário: crescimento pela produtividade, capitalização na complementaridade, selectividade para a equidade.

Economista

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