Devemos um favor inestimável ao ministro
das Finanças - que sabe que será impossível equilibrar as contas públicas
NÓS, portugueses, em geral, lidamos mal com os números -
melhor, lidamos mal com toda a espécie de ciências exactas.
Um pouco fantasistas, também não lidamos muito bem com a
verdade, nua e crua. Por razões que os mais conhecedores
julgam seculares, habituámo-nos a ideias tão extraordinárias
como as de que pode haver rendimento sem produção, ou que é
possível aumentar o rendimento colectivo através de mero
gasto público. Por duas vezes, no passado recente, estas
fantasias foram confrontadas com a rude prova dos factos.
Foi em 1977/78 e em 1983/84, eram ministros das Finanças
Vítor Constâncio e Hernâni Lopes, e primeiro-ministro, em
ambos os casos, Mário Soares. Da segunda vez, a mais
violenta, estima-se que o salário real médio pode ter caído,
num só ano, mais de 10%.
Passada a tempestade, regressou a fantasia.
Há pelo menos dez anos que se sabe que o sistema de
segurança social público é insolvente - porque só poderá
pagar o que prometeu, e em parte ainda promete, à custa de
uma carga fiscal que as gerações futuras se recusarão a
suportar, com toda a legitimidade.
São vários os factores, todos eles «claros como água»
para quem tiver o culto dos números, e da verdade: a
evolução demográfica, incluindo a redução da natalidade e
aumento da esperança média de vida, o crescimento da
economia, a taxa de desconto das responsabilidades futuras
do sistema (ou, se preferirem, a taxa de capitalização dos
activos que respondem por essas responsabilidades, quando
existem).
Confrontados com a verdade, muitos se preocuparam em
escondê-la, incluindo sucessivos responsáveis máximos. A
segurança social serviu para tudo: desde pagar pensões a
milhões de portugueses que nunca descontaram, até antecipar
reformas que alegadamente viabilizariam empresas e, em
alguns casos, calar vozes que ameaçavam tornar-se incómodas.
Durante os primeiros trinta anos da sua vida profissional,
muitos portugueses descontaram tão pouco quanto quiseram
porque, para efeitos de reforma, só contavam «os melhores
dez dos últimos quinze» anos das suas carreiras
contributivas.
Devemos um favor inestimável ao ministro das Finanças -
que, como muitos de nós, sabe que será impossível equilibrar
as contas públicas, isto é, tornar o Estado português
solvente, sem mudanças de fundo nas áreas da Segurança
Social e do Sistema Nacional de Saúde. Segunda-feira, dia 9
de Janeiro de 2006, foi apenas o primeiro «round» de uma
longa luta - infelizmente, para muitos de nós, já demasiado
tarde. Mas essa não é uma culpa que se lhe possa assacar.
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