Expresso - 14 Jan 06

O primeiro ‘round’

Daniel Bessa

 

Devemos um favor inestimável ao ministro das Finanças - que sabe que será impossível equilibrar as contas públicas

 

NÓS, portugueses, em geral, lidamos mal com os números - melhor, lidamos mal com toda a espécie de ciências exactas. Um pouco fantasistas, também não lidamos muito bem com a verdade, nua e crua. Por razões que os mais conhecedores julgam seculares, habituámo-nos a ideias tão extraordinárias como as de que pode haver rendimento sem produção, ou que é possível aumentar o rendimento colectivo através de mero gasto público. Por duas vezes, no passado recente, estas fantasias foram confrontadas com a rude prova dos factos. Foi em 1977/78 e em 1983/84, eram ministros das Finanças Vítor Constâncio e Hernâni Lopes, e primeiro-ministro, em ambos os casos, Mário Soares. Da segunda vez, a mais violenta, estima-se que o salário real médio pode ter caído, num só ano, mais de 10%.

Passada a tempestade, regressou a fantasia.

Há pelo menos dez anos que se sabe que o sistema de segurança social público é insolvente - porque só poderá pagar o que prometeu, e em parte ainda promete, à custa de uma carga fiscal que as gerações futuras se recusarão a suportar, com toda a legitimidade.

São vários os factores, todos eles «claros como água» para quem tiver o culto dos números, e da verdade: a evolução demográfica, incluindo a redução da natalidade e aumento da esperança média de vida, o crescimento da economia, a taxa de desconto das responsabilidades futuras do sistema (ou, se preferirem, a taxa de capitalização dos activos que respondem por essas responsabilidades, quando existem).

Confrontados com a verdade, muitos se preocuparam em escondê-la, incluindo sucessivos responsáveis máximos. A segurança social serviu para tudo: desde pagar pensões a milhões de portugueses que nunca descontaram, até antecipar reformas que alegadamente viabilizariam empresas e, em alguns casos, calar vozes que ameaçavam tornar-se incómodas. Durante os primeiros trinta anos da sua vida profissional, muitos portugueses descontaram tão pouco quanto quiseram porque, para efeitos de reforma, só contavam «os melhores dez dos últimos quinze» anos das suas carreiras contributivas.

Devemos um favor inestimável ao ministro das Finanças - que, como muitos de nós, sabe que será impossível equilibrar as contas públicas, isto é, tornar o Estado português solvente, sem mudanças de fundo nas áreas da Segurança Social e do Sistema Nacional de Saúde. Segunda-feira, dia 9 de Janeiro de 2006, foi apenas o primeiro «round» de uma longa luta - infelizmente, para muitos de nós, já demasiado tarde. Mas essa não é uma culpa que se lhe possa assacar.

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