Público - 10 Jan 04

Cheques, Contas e "Cabalas Involuntárias"
Por GRAÇA FRANCO

Na política, como em quase tudo na vida, é preciso ter sorte. Li algures que um conhecido líder uma vez alertado por um amigo para o facto de "ter sorte" lhe terá ripostado " e o trabalho que eu tenho para ter sorte?". Lembro-me disso quando penso no actual Governo. Não sei se foi apenas por "falta de trabalho" mas, a verdade é que teve azar. E não foi pouco! Havendo a menor probabilidade da coisa correr mal, corria. Apostado em provar a validade da terceira lei de Murphy.

Lembram-se da imagem da menina sardenta, de cabelos revoltos, numa vestimenta apalhaçada às risquinhas vermelho bandeira? Aquela que deu a cara pelo folheto de propaganda orçamental ? Pois bem, qual era a probabilidade dessa mesma imagem vir a aparecer, escassos dias depois, nas mesas de trabalho da quase totalidade dos opinion makers do país, com a mesma vestimenta e um enorme nariz de palhaço? Nenhuma? Pois bem, aconteceu!

Vinha só a ilustrar o mês de Janeiro num calendário enviado gentilmente pela SIBS. Expôs-se o Governo à chacota geral! Seria a probabilidade de um num milhar? Ou de um num milhão? Não importa. Existia. Havia de acontecer...

Diria Guterres que "é a vida" eu, pragmática, acho que foi puro azar. Pior, só mesmo se aparecesse de nariz de Pinóquio. Então a risota geral, suscitada pelo narizinho vermelho, talvez pudesse ser alvo de inquérito parlamentar na dissolvida câmara. A tese da "cabala" para descredibilizar o documento, com a agravante de parecer "manifestamente involuntária", esteve a um passo de renascer.

Convenhamos que a miúda podia ser a mesma mas, pelo menos, ter outra vestimenta. Ou ilustrar o calendário de Agosto e só nos darmos conta lá no meio do ano. O cúmulo do azar aconteceu: ilustrou Janeiro. Claro que sendo a SIBS uma instituição bancária, as mentes mais perversas poderão lembrar-se das declarações de Paulo Portas e Bagão Felix sobre o lobby da banca contra o Orçamento. Eu por mim tenho como boa a explicação da empresa de publicidade de que se tratava de imagens baratinhas e, por isso, oferecidas em simultâneo a vários clientes no mesmo CD com mais de mil opções.

Não acho justo que se venha acusar o Governo de não ter pago um dinheirão para comprar em exclusivo a imagem da criança. A única vantagem seria dez anos depois poder continuar a usá-la para uma campanha de vacinação. Mas sabe-se lá se o Governo de então não se lembrava ainda do orçamento deste ano...Não se pode criticar o Governo por gastar demais em propaganda e por gastar de menos ao não precaver todas as hipóteses da mesma ser eficaz. Eu recuso-me a ir por aí.

Mas voltando ao folheto. Li e reli o Orçamento para o comentar como faço, por dever de ofício, há mais de vinte anos. Reconheço, no entanto, que sofro do síndroma dos macro-economistas ( avessos a simplificações e comparações demagógicas). Por isso, confesso que fiquei feliz com o texto que se permitiu fazer por mim umas continhas que eu, em consciência, jamais poderia fazer.

Vi lá, preto no branco, um número que durante meses tentei obter sem sucesso junto do Ministério da Educação e me teria dado um jeitão na entrevista ao ex-ministro David Justino. Na altura, usei um outro bastante inferior ( uns escassos 3600 euros contra os 4200 agora revelados pelo Governo!).

Está lá escrito que cada português paga, em média, 3000 euros de imposto anual e estão lá todos os impostos que eu pago ( mais o IRC e o tabaco porque ninguém fuma cá em casa). Constato que, tendo um salário felizmente acima da média, pago também infinitamente mais. Como sempre defendi um sistema progressivo, acho isso normal, justo e não protesto.

Diz-se depois, de forma quantificada, que em média cada português recebe 3 mil e quinhentos euros de benefícios directos desses impostos, deixando implícito que somos todos responsáveis pelo défice, na proporção média de 500 euros por cidadão. A conta é contestável mas, adiante. Acrescenta-se a seguir quais os benefícios "médios" obtidos com os ditos impostos e quantifica-se: em saúde (700 euros ano), acção social (1100), infra-estruturas e transportes (370 euros), e uns surpreendentes 4200 euros por estudante "beneficiário" do ensino básico e secundário.

Chegado aqui o contribuinte que, como eu, tenha os filhos a estudar neste nível de ensino no sector privado, respira fundo e faz contas de cabeça. No meu caso as contas do Governo vezes quatro já daria uma economia orçamental anual de 16 mil e 800 euros. O mais pequeno como está no pré-escolar não consta desta conta mas, também tem custos no orçamento doméstico e poupanças para o gasto público. É obra!

Cá por casa a poupança estatal traduz-se num duplo encargo. Em rigor, os meus impostos chegam muito bem para pagar a educação de cinco meninos no sistema público e sobram para os demais benefícios reportados mas, como optei ( usando a garantia Constituicional da liberdade de escolha ) pelo ensino privado, pago a educação duas vezes. Claro que tenho vantagens menores: mais mês e meio de aulas este ano, todos os professores colocados no primeiro dia, disciplina qb, vigilância no recreio, e valores partilhados com a família e não necessariamente com o Bloco de Esquerda, a começar na recusa da imposição da laicidade militante. Estou muito contente com a escolha mas cada vez tenho menos dinheiro para a suportar.

Estará o Governo certamente lembrado que chegou ao poder com um programa eleitoral onde se afirmava " o quase monopólio da escola pública que hoje existe em todos os níveis de ensino não é um modelo desejável" e, acrescentando, que se bateria por "um maior equilíbrio entre a escola pública, social e privada "enquanto destinatário do esforço de financiamento". Ouvi durante anos Paulo Portas defender o cheque ensino. A conquista por uma liberdade de escolha efectiva na educação parecia garantida.

Na lei de bases da Educação, aprovada em 2003, consagrou-se em teoria o fim da supletividade do ensino privado. Dava-se cumprimento a um requisito constitucional da efectiva "liberdade de escolha" que nunca vira acautelada a forma prática de se concretizar. Porém, a equipa do Dr. Justino resolveu avançar na prática em sentido oposto.

Em termos fiscais disse que não tinha dinheiro para fazer mais e pôs liminarmente de lado a hipótese de optar por um cheque ensino e, como se isto não bastasse, cortou drasticamente os contratos de associação com as escolas privadas, condenando-as globalmente a uma lenta asfixia financeira. Em total arrepio da prática socialista e cavaquista anterior.

Por isso é tão importante que o Governo venha dizer quanto custa um menino na escola pública (4200 euros!). Eu, com base nisso, só vinha sugerir que me deixassem abater nos meus próprios impostos o que gasto com a escola dos meus filhos já que abdico dos benefícios obtidos pelos que, pagando exactamente os mesmos impostos, optam pelo sistema público.

Em alternativa, pode o Governo canalizar directamente para a escola por mim escolhida o equivalente ao que lhe custaria cada uma das minhas crianças na escola pública. É isso que faz o Governo belga ao assegurar, a possibilidade de opção público/privado a todos os cidadãos ( pobres ou ricos) em função das preferencias pessoais. E por lá a escola pública tem certificação de qualidade igual à privada, o que por cá nem sempre ocorre.

Como o colégio gere com maior eficácia as verbas recebidas do que faz o Estado, estou em crer que acordaria mesmo num pequeno desconto... Talvez os 3600 dos contratos de associação bastassem por cada aluno.

Caso contrário, e se o Estado concluir que precisa dos meus impostos para fazer uma série de outras coisas como pagar folhetos de propaganda e quejandos, então na minha condição de macro-economista, devo informar que várias "Exas" subestimaram o défice de 2005 em qualquer como 17 mil euros correspondentes ao que passarão a pagar nas escolas cá do bairro pela minha prole. Se não for pedir demais gostava que os responsáveis dos vários partidos dissessem o que pensam fazer "na prática" sobre a questão. Até 20 de Fevereiro. É cá por coisas.

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