Público - 26 Jan 04

Esqueceram-se da Irmã da Jucelina!
Por GRAÇA FRANCO

O Governo mandou realizar um estudo para apurar com exactidão quais eram as reais necessidades de mão-de-obra imigrante do país. Consultadas mais de vinte mil empresas, concluiu por uma necessidade da ordem das 19.634 almas (cito o "Expresso") e por uma quota adicional de legalizações de 6500 (depois de descontados os imigrantes actualmente no desemprego). Notável precisão num país onde nunca se acerta previsão nenhuma! E este é o ponto. Estou em condições de garantir ao Governo que, mais uma vez, o número não está correcto: esqueceram-se da irmã da Jucelina! Um número mais aproximado da realidade seria o de 19.635.

Eu explico: a Jucelina entrou na vida de uma das minhas amigas há coisa de três meses. Foi recebida na família de braços abertos. Embora brasileira estava legalmente no país, tinha carta e, por isso, podia ir buscar a criançada às respectivas escolas. A minha amiga faz, como eu, parte do núcleo em extinção dos amigos da Segurança Social, e tem também cinco filhos! A Jucelina tinha ainda uma cultura média que lhe permitia ajudar nos trabalhos da escola e a enorme vantagem de ser mãe de três filhos, ou seja, de não panicar à primeira dor de cabeça das crianças. Além disso, em caso de emergência, podia sempre subornar os pequenos com "brigadeiros" fresquinhos. Foi contratada de imediato para fazer face à baixa da senhora Margarida imobilizada por três meses por causa da operação às varizes...

Pior, foi quando no primeiro dia a Jucelina apareceu no trabalho, sem carta, sem visto e com o Ismael. A carta não chegara do Brasil, e o visto "a pegar por causa do marido" só seria possível obter lá para o fim do mês... Quanto ao Ismael, com dois anos e tal, não tinha ninguém com quem ficar e "como ele era muito sossegado" vinha com a mãe. Sem alternativas, de última hora, a minha amiga lá se desembrulhou com a família para um mês de improviso na busca das crianças e a Jucelina, com o Ismael, pegou ao trabalho.

Os primeiros fins de tarde foram de loucura. Aos cinco da casa somava-se o Ismael que, ora tinha dores de barriga, ora chorava com sono, ora brigava com o Pedro acusando-o de ladrão de chuchas. A roupa acumulou. A casa andou de pantanas.

No fim do primeiro mês já havia Visto mas ainda não havia carta! A minha amiga preparou o discurso para o final do período de experiência sem renovação de contrato. Aproximou-se da Jucelina mas ela, antecipando o desfecho, desfez-se em lágrimas. Disse que andava "sem cabeça" porque tinha sido posta na rua pelo senhorio que lhe dava até final da semana para rumar a uma pensão com as três crianças e o marido.

A Jucelina ficou. Antecipando o Natal recebeu um presente que sempre dava para adiantar uma parte do pagamento do aluguer. O Ismael melhorou das dores de barriga. Mas a carta atrasou. O improviso manteve-se, a comida estranhava, os brigadeiros enjoaram, a roupa acumulava-se e, ao fim de dois meses, os filhos pré-adolescentes exigiam: "a substituição imediata da substituta da senhora Margarida!". O principal argumento era o de que o Ismael só se calava a ver bonecos animados quando eles queriam jogar playstation... Perante isto, havia o risco grave de se tornarem xenófobos, embirrando com o choro em brasileiro.

Quando chegou o momento de avisar a Jucelina, ela antecipou-se e anunciou que se tornara no sustento lá de casa. O marido (carpinteiro) estava desempregado, a trabalhar provisoriamente em cargas e descargas num corrupio sem folgas. Por isso é que ao Ismael se tinham somado múltiplas vezes o Abraão e, nas falhas do apoio " lá da Igreja", o bebé agarrado às saias da Jucelina.

Ao terceiro mês, o caos tinha finalmente um fim à vista. A carta chegou e o Ismael poderia voltar a ficar com a irmã da Jucelina disposta a vir do Brasil e pronta a tomar conta dos sobrinhos. Para se legalizar precisava apenas de um contrato. Podia, por exemplo, trabalhar só de manhã e fazer baby sitting à noite.

A senhora Margarida, que rumara para casa da irmã, em Paris, a fim de recuperar da operação às varizes, mandava dizer que ia por lá ficar a tratar dos sobrinhos netos... por mais uns meses. Gelava, mas a sobrinha estava à beira de perder o emprego por não ter a quem os deixar. Além disso, a Jucelina era finalmente da casa e o Ismael já emprestava a chucha.

Na emergência a minha amiga ligou-me: "não sabes de ninguém que precise da irmã da Jucelina para ela poder legalizar-se e passar a tomar conta do Ismael e do Abraão, que o bebé é o menos... É que eu não tenho coragem de pôr a mulher na rua com o marido desempregado e nem sei quando regressa a senhora Margarida": Foi aí que eu iniciei com sucesso o meu estudo de mercado.

A semana passada o inquérito deu finalmente frutos. Recebi uma resposta positiva. Se a irmã da Jucelina estiver "legal", uma das minhas amigas está disposta a contratá-la para as férias de parto da empregada actual e a cunhada dela garante-lhe depois um salário mínimo complementar por todas as manhãs. A coisa parecia estar bem encaminhada quando, sem ninguém me consultar, apareceu nos jornais aquele trágico número para as legalizações, a deixar de fora a boa da irmã da Jucelina.

Pior. Sem a legalização dela é o posto de trabalho da Jucelina que corre riscos e o futuro do próprio Ismael que pode perigar... Os pré-adolescentes da minha amiga calaram-se quando lhes expliquei direitinho a tese do Dr. Victor Constâncio. Agradeçam à Jucelina e ao marido, e tratem bem do Abraão, do Ismael e do Robertinho porque serão eles que vão assegurar o pagamento das vossas reformas, sustentar o crescimento da nossa economia e preservar os nossos níveis de bem-estar! Porque, por cá, ou passam a dar ouvidos aos avisos do Governador ou com as teses do bloco de esquerda a ganhar cada vez mais adeptos e o pendor anti-natalista retro da nossa velha esquerda, tardiamente "soixante huitard", vamos acabar todos na miséria e precocemente eutanasiados, deixando no desespero os nossos fiéis companheiros de toda a vida: o cão e o papagaio!

Claro que, neste caso concreto, resta uma esperança. O senhor ministro Bagão Félix diz que faltam 700 empregos para carpinteiros e talvez um deles possa servir para o marido da Jucelina. Isto se não forem todos em Abrantes e Alhos Vedros porque ele vive ali para os lados de Santa Apolónia.

Eu sei que o ministro Morais Sarmento deixou entreaberta uma portinha naquilo do reagrupamento familiar... mas dentro do Governo alguém vai ter de explicar a alguém que, quando nos dizem que faltam vinte mil trabalhadores e há 16 mil no desemprego, a maneira de avaliar quantos faltam efectivamente não é fazer uma simples subtracção. O marido da Jucelina não pode ocupar o lugar em aberto para a cunhada, porque a minha amiga não quer um carpinteiro lá em casa, todas as manhãs, a dar um jeito às camas e a preparar o almoço. Ela quer é a irmã da Jucelina, está-se nas tintas para o marido...

Aliás, não é preciso pensar muito para concluir que é sempre assim. Há 450 mil desempregados e isso não impede que em vinte mil empresas haja, em média, pelo menos um emprego disponível sem candidato à altura. Nem se entende, também, como é que as necessidades de mão-de-obra se podem distinguir entre mão-de-obra imigrante ou não, se o critério não for o da pura xenofobia!

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