Público - 23 Jan 04

Guimarães: o Retrato da Nação
Por MIGUEL SOUSA TAVARES

Um delegado do Ministério Público do Tribunal de Guimarães entendeu propor que o processo relativo à epidemia de falsas baixas de alunos do 12º ano daquela cidade, que faltaram em massa ao respectivo exame nacional, declarando-se doentes (uma história falada há ano e meio atrás), terminasse sem julgamento nem condenações, desde que os arguidos a acusar aceitem pagar umas simples multas. Por sua vez, o meritíssimo juiz de comarca aceitou a tratação proposta pelo Ministério Público, limitando-se a ampliar o montante das multas sugeridas, fixando-as entre 200 e 500 euros - menos, certamente, do que aquilo que o Estado gastou em despesas e horas de trabalho de investigadores, escrivães e magistrados.

De um ponto de vista estritamente jurídico, podemos aceitar a solução proposta (afinal de contas, fazer batota nos exames não é assim um crime tão grave...). Mas de um ponto de vista ético, de uma perspectiva de regras de vida em sociedade, daquilo que reflecte os valores correntes de uma colectividade, esta decisão judicial é gravíssima - em si mesma e como paradigma eloquente de um comportamento tornado banal entre nós: a desresponsabilização e a impunidade sistemáticas, a todos os níveis e em todos os sectores da vida pública. Duzentos adolescentes acharam-se mal preparados para um exame nacional de encerramento do curso dos liceus e congeminaram a solução de recorrerem a um expediente colectivo para beneficiarem de uma época extraordinária, meses depois; duzentos pais e encarregados de educação compreenderam o problema dos filhos e resolveram apoiá-los activamente nessa batota; e 20 ou 30 médicos aceitaram legalizar a batota, dispondo-se a assinar atestados de falsas doenças. E tudo isto acaba com uma multa por mau comportamento, tal qual como uma multa por estacionamento indevido. Vale a pena apreciar mais de perto o comportamento  e todos os intervenientes para compreender bem o alcance deste desfecho.

Comecemos pelos alunos: não eram propriamente crianças, mas jovens adultos de 17 ou 18 anos. Não cumpriram a sua parte do contrato social que, por um lado, leva os contribuintes a pagar o ensino público e, por outro lado, obriga os estudantes a tirarem proveito desse esforço dos pagadores de impostos. E não cumpriram a sua obrigação de cidadãos, dispondo-se a fazer batota para obter vantagens ilícitas sobre todos os outros estudantes do país que com eles concorriam, em suposta igualdade de circunstâncias, a vagas na universidade pública. Aposto que, hoje, os que entraram na universidade devem estar na primeira linha da contestação às propinas, porque aprenderam desde cedo - e tiveram quem os apoiasse - que pode haver direitos a que não correspondem deveres e que pode haver sempre forma de abrir caminho na vida através de expedientes ou batotas. Se eles são o futuro, o futuro é preocupante.

Vêm depois os pais e encarregados de educação. Seguramente que são cidadãos exemplares, dos que têm sempre legítimas queixas dos outros, do Estado e, em particular, dos políticos. Mas os valores que, com este exemplo, deram aos filhos reduz a nada a legitimidade do seu capital de queixas: se, quando se trata de garantir o sucesso escolar dos filhos, eles se dispõem a ensinar ou patrocinar o caminho da fraude, que autoridade lhes sobra para reclamar do hospital público onde são mal atendidos, da "cunha" que os preteriu no serviço público, do autarca local que recebe dinheiro por baixo da mesa? Com o seu exemplo e a sua disponibilidade, eles ensinaram aos filhos qual é o caminho para abrir caminho em Portugal e explicaram-lhes, certamente, que, no final, tudo acabaria impune, conforme é costume entre nós. É seguro que lhes terão dito: "Todos o fazem, porque não haveríamos nós de fazer também?"

Instrumento indispensável desta cabala colectiva de Guimarães foram os médicos que passaram os falsos atestados e que - aposto no escuro - escaparão totalmente incólumes. Quando era advogado, tive uma vez um processo em que uma pequena empresa que eu representava se defendia de um despedimento com justa causa de um trabalhador que passava a maior parte do tempo de baixa e que assim mantinha ocupado um posto de trabalho que fazia realmente falta preencher à empresa. As suas faltas estavam todas justificadas por atestados, sucessivamente renovados, de um mesmo médico. No limite, chegava ele a dar-lhe baixas por motivos "psiquiátricos" e, para o precaver de uma súbita visita de inspecção médica ao domicílio, chegou ao ponto de escrever no atestado que a recuperação clínica do "doente" recomendava a sua frequente ausência de casa - embora não para ir trabalhar. Aparentemente, a acção estava perdida, porque nada há que possa fazer prova contra a verdade clínica atestada por um médico. Porém, uma penosa e difícil investigação dos atestados do médico, todos feitos e datados em papel do Centro de Saúde competente, permitiu-nos obter prova documental de que, em várias datas constantes dos atestados, o médico não se encontrava ao serviço do Centro. Munido desses documentos, apresentei-me no julgamento e comecei a requerer a sua junção ao processo, de forma a provar que os atestados eram falsos. Aí, o juiz interrompeu a sessão, chamou os advogados de parte e explicou ao meu opositor que, face àqueles documentos, a acção estava obviamente perdida para ele. Mas que, se eu insistisse em juntar os documentos, ele, juiz, era obrigado a extrair uma certidão dos autos e enviá-la ao Ministério Público para ser aberto um processo contra o médico, por crime de falsas declarações. Atendendo à gravidade da coisa, propunha que o meu colega desistisse da acção e eu desistiria de juntar a prova dos falsos atestados. Ele aceitou, porque nada mais de útil poderia fazer, e eu aceitei porque o meu cliente, tendo obtido vencimento, já não desejava incomodar-se com mais nada. Mas a mim custou-me muito engolir aquele acordo, porque ainda acreditava que há coisas que não devem passar impunes e é para isso que existe a justiça e os tribunais. Mas aprendi que, se os médicos que passam habitualmente falsos atestados, o legislador que os transforma em prova absoluta e os juízes que os aceitam sem pestanejar mesmo sabendo que provavelmente são falsos, tivessem de pagar do seu bolso o ordenado dos que assim estão dispensados de trabalhar, outra ética de comportamento reinaria na sociedade portuguesa. Os médicos não fazem a mínima ideia dos danos que os seus falsos atestados causam à produtividade das empresas e à saúde das relações laborais. Por alguma razão somos o país europeu com mais baixas por doença anualmente. Mas não são apenas os danos económicos que estão em causa, é também e muito o padrão de comportamento cívico e profissional: quando um professor falta às aulas, declarando-se falsamente doente, sabendo que com isso prejudica 30 crianças por turma, que se deslocaram à escola para ter aulas, ele demonstra que não tem categoria para ensinar. E quando um médico lhe apara o jogo, jurando falso, demonstra que mente e que é irresponsável, mas também que acha normal e de apoiar o que deveria achar insustentável. Em Guimarães, como sempre, estes médicos vão todos ficar impunes.

E, aliás, tudo o que se passou, no entender de um magistrado do Ministério Público e de um juiz, não justifica mais do que uma simples multa. É certo, repito, que não se tratou de um crime grave. Mas a justiça não serve apenas para condenar os crimes graves, mas também para julgar os desvios de comportamento que indiciam coisas mais graves. Serve também para atalhar ao pequeno mal antes que ele se transforme em grandes males. A mentalidade que promove ou consente a pequena vigarice está disposta, por natureza, a aceitar a grande vigarice. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade. Basta que se instale a ideia de que as leis podem sempre ser aldrabadas - e impunemente ou quase.

P.S. - A "descoberta" pelo primeiro-ministro e ministra das Finanças de que somos nós quem deve dinheiro à Madeira seria uma anedota senão fosse uma ofensa aos contribuintes. A rigorosíssima dra. Ferreira Leite consente
afinal excepções determinadas pelo interesse partidário, sejam elas o Benfica ou a Madeira.

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