Público - 17 Jan 04
Frases Feitas
Por HELENA MATOS
Como de boas intenções de resultados duvidosos está este país cheio, aqui
ficam algumas das frases feitas, prontas a servir, com que vamos
entretendo o quotidiano.
"As cartas anónimas vão para o caixote do lixo." Durante a recente
polémica a propósito da divulgação pela comunicação social do teor de
algumas dascartas anónimas apensas ao processo Casa Pia, houve quem
defendesse que o destino das cartas anónimas é o caixote do lixo. Outros
defenderam uma espécie de gradação para as cartas anónimas, gradação essa
que vai desde o nobre arquivo até ao abjecto caixote do lixo. Assim o dito
caixote seria o destino daquelas cartas que referissem pessoas acima de
qualquer suspeita. Quanto às outras cartas, essas seriam guardadas.
Mas como seleccionar as cartas anónimas que vão para o caixote do lixo
daquelas que não vão? Porque o presidente da República é mais idóneo que
um jogador de futebol deitam-se fora as cartas que aludem ao PR e
guardam-se as que visam os jogadores? E se o jogador for da geração de
ouro? E se em vez de ser dessa geração for desta que ainda não se sabe por
que metal é representada mas que já escavacou um balneário?...
Parece-me óbvio que o bom nome a que todos temos direito não se defende
destruindo documentos mas sim impedindo as fugas de informação,
penalizando quem as faz e castigando os caluniadores. Felizmente certas
cartas anónimas não foram parar ao caixote do lixo. Por exemplo, teria
sido melhor ir para o lixo aquela carta anónima que, em Julho de 2003,
chegou ao gabinete do utente do Hospital de Santa Maria denunciando a
angariação de bebés para adopção neste hospital lisboeta?
A própria natureza anónima desta carta chama a atenção para um facto que
não pode ser subestimado: a extraordinária precariedade emocional e a
enorme dependência em que se encontram as pessoas internadas em hospitais
e lares e os portadoras de doenças crónicas em relação aos serviços
hospitalares. O seu medo de, como qualquer cidadão, reclamarem do que lhes
parece injusto devia merecer-nos muito mais atenção.
"Um mundo de carências." Há anos que assistimos ao enquadramento da
violência contra as mulheres numa espécie de moldura neo-realista:
problemas económicos; níveis fracos de escolaridade; alcoolismo e outros
estigmas por demais conotados socialmente. Este "mundo de carências" dos
extractos sociais mais baixos tem o seu reflexo nos excessos burgueses. O
que infelizmente não varia à luz desta teoria das carências dos pobres e
dos excessos dos ricos são os resultados para as mulheres: espancadas,
mortas, violadas...
Ora precisamente esta semana, no âmbito do 3º Simpósio de Sexologia da
Universidade Lusófona, foram revelados estudos que têm dificuldade em
caber dentro da moldura neo-realista: uma em cada quatro das 837
estudantes universitárias interrogadas pela psicóloga Fátima Gameiro,
responderam ter tido experiências sexuais forçadas. A estes dados já de si
preocupantes juntam-se outros igualmente perturbantes: entre os 925
adolescentes inquiridos pela professora de Psicologia da Saúde, Susana
Lucas, para a sua tese "A agressividade nas relações de namoro de
adolescentes" foram detectados casos de agressão por parte dos rapazes.
Pontapés, empurrões e murros são algumas das formas através das quais os
rapazes exteriorizam a sua agressividade nas relações de namoro.
Como este tipo de dados é, regra geral, divulgado em encontros em que
predominam psicólogos e psiquiatras, aquilo que nos chega das intervenções
aí proferidas restringe-se, em geral, a reproduzir as frases mais
polémicas - como aquelas que foram proferidas pelo psiquiatra Pio Abreu
que, num outro encontro, este sobre abuso sexual de menores, afirmou que
"a auto-estima de uma pessoa melhora se for violada por uma pessoa famosa"
- ou a, recorrendo a uma espécie de "psicologuês", teorizar sobre a
transmissão dos modelos tradicionais, a falta de referências e outras
explicações que incidem muito mais na figura do agressor do que na do
agredido.
Tão importante quanto estudar as razões da agressão é perceber o que leva
uma jovem a submeter-se, neste século XXI, à agressão. O que leva, por
exemplo, a que nos video-clips que passam nos diferentes canais destinados
aos jovens adultos e adolescentes, os papéis reservados às raparigas
oscilem entre a mais óbvia provocação sexual ou poses de completa
submissão em cenas que não raramente remetem para cenários de violação ou
agressão. Esta estética da violência chega a cobrir-se de glamour em
desfiles de moda em que a maquilhagem transforma as jovens em seres
doentia e esmurradamente olheirentos.
A emancipação das mulheres não acabou com a violência que contra elas tem
sido exercida ao longo dos tempos. Em alguns casos, o protagonismo das
mulheres poderá mesmo desencadear outras formas de violência por parte dos
homens que se vêem relegados do seu papel tradicional. Contudo o que a
emancipação das mulheres impõe é que as vítimas não sejam relegadas para
segundo plano. Que na tentativa de explicar e curar o agressor não se
esqueça que existem agredidas. E que, para prevenir a agressão, é tão
importante que se eduquem os homens para não agredirem mas também as
mulheres para não pactuarem com as agressões.
"Uma mudança mais rápida das mentalidades." Esta frase foi proferida pelo
ministro Bagão Félix a propósito do incumprimento, por parte de algumas
empresas, da legislação sobre a maternidade. Que uma mudança de
mentalidades se impõe no país e, dentro dele, nas empresas, parece certo.
Mas é redutor e injusto restringir esta questão a um problema de
mentalidades. Não só não se pode esperar que os empresários cumpram a
legislação sobre a maternidade por estarem muito preocupados com a
demografia ou por puro bom coração, como a violação desta legislação
ocorre muito frequentemente em sectores tidos como avançados. Veja-se a
este título o que se passa em algumas empresas de serviços, nomeadamente
de comunicação social. O que aí encontramos são jovens licenciadas que vão
aceitando condições bizarras de trabalho que frequentemente passam por
reduzir a escassas semanas os quatro meses de licença de parto a que têm
direito. Raramente o assumem de forma directa, invocam sim as questões da
carreira. Esta palavrinha, 'carreira', que muito apropriadamente servia
antigamente para designar percursos de autocarros e camionetas, é agora
usada em geral pelas jovens mulheres que, quanto menos promissor é o seu
futuro profissional e mais degradantes são as suas condições de trabalho,
mais elas declaram estar a fazer "uma carreira".
Ao contrário do que acontecia e acontece com os trabalhadores doutros
sectores menos dados a eufemismos e mais práticos em reivindicações, como
é o caso dos trabalhadores da indústria, estas mulheres, que trabalham
frequentemente em áreas conotadas com o progresso, ficam tolhidas nesse
universo em que os empregados passam a colaboradores e, em vez de
trabalharem, fazem carreira. E em que a legislação é letra morta. |