Público - 16 Jan 03

Para Além de Nós
Por PEDRO STRECHT

Ninguém é omnipotente, e se o é ou tenta ser, arrisca-se a sofrer um bom bocado à custa disso mesmo, ou então a fazer sofrer os outros nesse movimento centrado em si próprio

A que distância deixaste o coração?

(José Tolentino de Mendonça)

Para além de nós, há os outros, a diferença, a distância entre o que queremos no aqui e agora e o que apenas conseguimos ter ou alcançar em cada um dos momentos, e há também o saber esperar, o desejo de lutar, no fundo tudo aquilo que nos faz sonhar, pensar, agir.

E há ainda a ideia de que nem tudo é controlável, sobretudo na parte do mundo em que se movem as emoções, os afectos, e que, por muito que isso custe a todos, é de uma boa parte do imprevisível que nasce a surpresa, o agradável e o que o homem tem elaborado de várias formas para poder evoluir. Ninguém é omnipotente, e se o é ou tenta ser, arrisca-se a sofrer um bom bocado à custa disso mesmo, ou então a fazer sofrer os outros nesse movimento centrado em si próprio, como Narciso, que olhando apenas para a sua própria imagem reflectida na imagem do lago acabou por definhar e morrer.

Acontece que hoje, bastante para além do que seria desejável, muitas pessoas vivem exclusivamente centradas em si próprias, incapazes de sentir e pensar sobre e com os outros, de respeitar as suas próprias limitações e fazendo disso não uma fraqueza mas uma das fontes principais de evolução.

Vem esta crónica a propósito do debate sobre clonagem humana, recentemente anunciada por um grupo de investigadores, e da perspectiva actual de mais novos casos poderem vir por outros a ser revelados. Desde o seu início que, do ponto de vista de saúde mental, o processo está repleto de desvio, de patologia, de doença, aspectos simples de compreender se tivermos em conta determinadas ideias.

O nascimento de toda e qualquer criança deveria pressupor um movimento prévio de amor e investimento afectivo de dois adultos de sexos diferentes. Assim como biologicamente não faz sentido ser-se concebido sem a conjugação de uma mulher e de um homem, isto é, de uma mãe e de um pai, o mesmo se passa do ponto de vista psíquico. Hoje, como ontem, há muitos adolescentes, crianças, bebés, que foram concebidos à custa de projecções mentais de adultos que, à partida, excluíram de forma consciente ou inconsciente o adulto de sexo oposto. Por exemplo, é muito complicado imaginar aspectos saudáveis numa mulher que decide ter um filho por "produção independente", pois isso é algo que qualquer criança futura lhe irá cobrar. Recordam-se de "Tudo Sobre a Minha Mãe", um filme do realizador espanhol Pedro Almodóvar? Aí era nítida a luta emocional de um rapaz que, na véspera de completar 17 anos, referia à mãe o desejo de conhecer o seu pai... Como a fotografia cortada ao meio que exibia, onde a parte do pai era omissa, também a sua vida era como uma árvore a que tinham suprimido metade dos ramos; não havia nenhuma representação paterna, não só pela ausência do pai, mas pela supressão activa que a mãe fazia da sua imagem. No filme, o rapaz morre num trágico acidente, como "morrem" partes de outros que conhecemos em circunstâncias idênticas e cujo sofrimento mental os leva a agir equivalentes suicidas. É essa circunstância que faz com que, finalmente, a mãe decida procurar o pai do seu filho, entretanto tornado homossexual, travesti, e já HIV+. Porque qualquer criança tem direito a conhecer o seu pai ou a sua mãe, independentemente da sua condição ou, pelo menos, a saber a história da sua origem, razão por que também se aconselha, por exemplo, a que as crianças adoptadas saibam que o foram.

Mas o problema da clonagem de humanos coloca-nos mais dois aspectos fundamentais que vale a pena relembrar. O primeiro é que qualquer criança, como ser, é mais que um somatório de órgãos, um conjunto de tecidos ou uma ligação de células. Criar um ser humano implica, felizmente, muito mais do que isso. Há uma parte da dimensão psíquica individual que é muito mais que a mera colagem de vários fragmentos. O segundo é o de que o funcionamento mental de uma pessoa saudável implica a capacidade de se descentrar dela própria, ou seja, de partir de uma esfera exclusivamente narcísica em que "eu existo, independentemente do outro", para um "eu existo pelo outro e com o outro".

Num dos últimos filmes do realizador Steven Spielberg, "Inteligência Artificial", um casal não aceita a morte biológica do seu filho e decide congelá-lo esperando que a ciência evolua e permita a sua reanimação. Entretanto, responde afirmativamente à proposta de adoptar David, um menino-robô, da mesma idade que o seu filho, e que fora programado para ter emoções. Claro está que, ao fim de pouco tempo, David desenvolve a capacidade de se ligar a estes adultos, que trata por pais, preenchendo-lhes assim uma falta que estes não quiseram ou conseguiram ultrapassar de outra forma. Mas, não muito tempo depois, o filho natural recupera e David deixa de fazer sentido para o casal. No filme, o menino é então abandonado numa floresta para que ali possa morrer. David já não interessava. Como qualquer objecto, era agora algo a eliminar, uma mercadoria a deitar fora, pois de verdade os seus pais nunca o haviam desejado, nunca tinha sido alvo de um amor incondicional, não viera ao mundo como sujeito, viera apenas para preencher uma perturbação não resolvida destes adultos. Depois, no restante tempo do filme, David tenta reencontrar os seus pais, tenta ser amado. O filme acaba muitos mil anos depois, quando, através de extraterrestres, David consegue contactar a sua mãe, então ressuscitada de propósito para um reencontro. Como num sonho bom, a mãe diz que o ama, que sempre o amou, que será assim para toda a vida e agora sim, finalmente, o filme pode acabar, a mãe pode morrer, o menino pode morrer, porque o amor renasceu, e dele a vida, ou o sentido mais verdadeiro da vida que prossegue em qualquer coração mesmo para além de tudo o que nos separa.

Hoje, se como eventualmente no futuro, assistimos passivamente à criação de bebés clonados, devemos então colocar uma pergunta, a quem o faz ou aprova, como o poeta José Tolentino de Mendonça: "A que distância deixaste o coração?"

Viver assim, desejar crianças dessa maneira irreal, é afinal trair o que de mais importante nos une e nos faz viver: o amor. E dele a capacidade de gostar dos outros, e viver com tudo o que existe para além de nós.