Público- 23 Jan 03
A Líbia e o Governo do Mundo
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
Lembram-se do atentato de Lockerbie? Lembram-se de como dois terroristas
treinados na Líbia fizeram ir pelos ares um Boeing 747 civil que se despenhou
sobre uma pequena aldeia da Escócia, matando 270 pessoas? Lembram-se de como
Kadafi protegeu anos a fio esses terroristas antes de os entregar à justiça?
Sabem que, segundo o último relatório da Amnistia Internacional, continuam a
existir centenas de presos políticos na Líbia, grande parte deles presos há mais
de dez anos e que nunca foram julgados? Que na Líbia é proibida a formação de
partidos da oposição assim como criticar o regime? Que a tortura é um método
usual para extrair confissões aos prisioneiros de consciência? Que são habituais
os "desaparecimentos" de quem se manifeste contra Kadafi?
Muito, muito mais poderia ser dito sobre o total desprezo do regime do coronel
Kadafi pelos direitos humanos, mas não vale a pena: a Líbia é suficientemente
conhecida como uma ditadura que utiliza os recursos imensos gerados pelas suas
reservas petrolíferas para, entre outras coisas, apoiar organizações terroristas
um pouco por todo o Mundo.
No entanto, a Líbia acaba de ser eleita para presidir ao Comité das Nações
Unidas para os Direitos Humanos. Exactamente: a Líbia não só já fazia parte
desse organismo, como agora coube-lhe o direito de assumir a sua presidência. De
todos os membros, só três votaram contra, 33 votaram a favor, 17 abstiveram-se
(o voto foi secreto, mas julga-se que os membros europeus do comité estão entre
os que tiveram a "coragem" de se abster).
Como é que esta aberração foi possível? Apenas porque é da tradição das Nações
Unidas entregar a presidência dos seus comités, de forma rotativa, a nações dos
diferentes continentes. Agora era a vez de África - e África escolheu a Líbia. O
muito dinheiro proveniente do petróleo que a Líbia distribuiu pelos que tinham
que fazer a escolha não é seguramente alheio a este desfecho.
É certo que a Líbia até nem será a pior escolha possível de África. Outra
hipótese era o Sudão, país onde ainda se pratica a escravidão mas que também faz
parte do Comité dos Direitos Humanos da ONU...
Este episódio ganha, nos dias que correm, especial significado. Não apenas por
ser um escândalo em si mesmo, mas por nos mostrar como funcionam as Nações
Unidas. Ou, pelo menos, como ainda funcionam as Nações Unidas.
Por outras palavras: uma organização que permite a eleição da Líbia para tal
cargo está muito longe, demasiado longe, de se parecer com qualquer espécie de
"governo global" sob cuja sombra protectora os povos pacíficos de todo o Mundo
se possam acolher. Quando vai ser um mandatário de Kadafi a velar pelo respeito
pelos direitos humanos à escala do planeta, então é caso para dizer que preferia
viver noutro planeta.
Não tenhamos pois ilusões. As Nações Unidas não são ainda nem serão tão cedo
qualquer coisa que se pareça com um Governo do Mundo sob o qual desejemos viver.
São úteis, necessárias e por vezes indispensáveis para se obterem acordos
internacionais e se evitarem conflitos armados. Mas se o direito internacional
que as rege permite eleições como a da Líbia, então talvez devêssemos deixar de
insensar, como um buda sacrossanto, esse tal "direito internacional" que se
abriga sob as Nações Unidas.

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