Diário de Notícias - 27 Jan 03

O homem e o seu tempo

JCEspada

António Alçada Baptista deu no passado dia 15 uma notável entrevista ao DN. Uma das figuras marcantes da sua geração, ele põe-se sempre todo em tudo o que diz, com generosidade, inteligência e sensibilidade. Contudo, o principal valor desse texto é o que revela dos grandes traços da personalidade da sua época. Uma das características do génio é ser transparente, além de iluminante. O primeiro traço de carácter do nosso tempo é o medo. «A minha [fragilidade] são os medos. Tinha medo de Deus e dos outros. Era um menino cheio de medos.» O medo é do escritor e da sua geração. A geração que conviveu com a bomba atómica, a grande depressão, o holocausto e o terrorismo teve muito medo. Mas a razão não é objectiva. O medo actual é maior que o das gerações das invasões bárbaras, peste negra, escravatura e feudalismo. É um medo espiritual.

No Evangelho, a frase mais repetida é precisamente «Não tenhais medo!» (Mt 1 20; 8 26; 9 22; 10 26-31; 14 27; 17 7; 28 5; 28 10; Mc 4 40; 5 36; 6 50; Lc 1 13; 1 30; 1 74; 2 10; 5 10; 8 50; 12 4-7; 12 32; Jo 6 20; 12 15; 14 1; 14 27). Na primeira cultura endemicamente cristã que pretendeu abandonar essa referência, não admira que fora do Evangelho renasça o medo. É o terror ancestral da falta de redenção. É o medo de Herodes.

O autor, tal como o seu tempo, libertou-se desses medos. A liberdade foi o grande valor do século XX, como a libertação no século XIX. Mas não sabe o que fazer com ela. «A grande meta do século XXI é o bom uso da liberdade. Saber usar a liberdade é, para mim, capital.» A nossa vida livre não tem felicidade, porque a nossa liberdade vem de rejeitar a nossa cruz. É a libertação de Barrabás, não a ressurreição de Cristo.

Este tempo é também corajoso e realizador. Alçada Baptista, com perspicácia e clareza, explicita-o de forma brilhante. «A minha referência é Jesus Cristo, na medida em que é homem. Cristo, aos meus olhos, é homem. Se fizer a imitação do que foi a vida de Cristo, estou a valorizar-me.» A generosidade e ambição são notáveis. Mas o horizonte é meramente humano. A visão moralista pós--cristã coloca o nosso limite num ideal pessoal, social, terreno. Como podem os nossos esforços humanos imitar Cristo? «Infelizmente, não consegui.» Ver Cristo, não como Deus salvador, mas como modelo ou exemplo, leva ao fiasco. Sabemo-lo há muito. Desde Judas.

Daqui nasce o desânimo. «As pessoas não sabem amar...» E o ataque. «... A Igreja tem responsabilidades nisso, porque faz confundir o amor com a sexualidade e a sexualidade com o pecado. A Igreja acabou por fazer a propaganda da sexualidade sórdida.» Esta afirmação, previsivelmente escolhida como título, é uma evidente aleivosia. Em dois milénios de vida cristã a posição é exactamente a inversa. Encíclicas, concílios, sumas, sentenças, homilias, catecismos, Escrituras dizem que o sexo é um dom maravilhoso, bem ou mal usado. Como a liberdade. A História regista a ideia de que sexo é pecado, mas nos hereges, puritanos ou esotéricos, que a Igreja sempre condenou.

Como é que um homem inteligente, sensível e generoso diz um disparate destes? Nele, não pode ser ignorância ou preconceito. O ataque soa claramente a defesa e autojustificação. Porque este tempo apaixonado pela liberdade, este tempo corajoso e realizador, grande e brilhante, nunca teve a grandeza de se pôr de joelhos e pedir perdão. Como Madalena.