António Alçada
Baptista deu no passado dia 15 uma notável entrevista ao DN. Uma das figuras
marcantes da sua geração, ele põe-se sempre todo em tudo o que diz, com
generosidade, inteligência e sensibilidade. Contudo, o principal valor desse
texto é o que revela dos grandes traços da personalidade da sua época. Uma das
características do génio é ser transparente, além de iluminante. O primeiro
traço de carácter do nosso tempo é o medo. «A minha [fragilidade] são os medos.
Tinha medo de Deus e dos outros. Era um menino cheio de medos.» O medo é do
escritor e da sua geração. A geração que conviveu com a bomba atómica, a grande
depressão, o holocausto e o terrorismo teve muito medo. Mas a razão não é
objectiva. O medo actual é maior que o das gerações das invasões bárbaras, peste
negra, escravatura e feudalismo. É um medo espiritual.
No Evangelho, a frase mais repetida é
precisamente «Não tenhais medo!» (Mt 1 20; 8 26; 9 22; 10 26-31; 14 27; 17 7; 28
5; 28 10; Mc 4 40; 5 36; 6 50; Lc 1 13; 1 30; 1 74; 2 10; 5 10; 8 50; 12 4-7; 12
32; Jo 6 20; 12 15; 14 1; 14 27). Na primeira cultura endemicamente cristã que
pretendeu abandonar essa referência, não admira que fora do Evangelho renasça o
medo. É o terror ancestral da falta de redenção. É o medo de Herodes.
O autor, tal como o seu tempo,
libertou-se desses medos. A liberdade foi o grande valor do século XX, como a
libertação no século XIX. Mas não sabe o que fazer com ela. «A grande meta do
século XXI é o bom uso da liberdade. Saber usar a liberdade é, para mim,
capital.» A nossa vida livre não tem felicidade, porque a nossa liberdade vem de
rejeitar a nossa cruz. É a libertação de Barrabás, não a ressurreição de Cristo.
Este tempo é também corajoso e
realizador. Alçada Baptista, com perspicácia e clareza, explicita-o de forma
brilhante. «A minha referência é Jesus Cristo, na medida em que é homem. Cristo,
aos meus olhos, é homem. Se fizer a imitação do que foi a vida de Cristo, estou
a valorizar-me.» A generosidade e ambição são notáveis. Mas o horizonte é
meramente humano. A visão moralista pós--cristã coloca o nosso limite num ideal
pessoal, social, terreno. Como podem os nossos esforços humanos imitar Cristo?
«Infelizmente, não consegui.» Ver Cristo, não como Deus salvador, mas como
modelo ou exemplo, leva ao fiasco. Sabemo-lo há muito. Desde Judas.
Daqui nasce o desânimo. «As pessoas
não sabem amar...» E o ataque. «... A Igreja tem responsabilidades nisso, porque
faz confundir o amor com a sexualidade e a sexualidade com o pecado. A Igreja
acabou por fazer a propaganda da sexualidade sórdida.» Esta afirmação,
previsivelmente escolhida como título, é uma evidente aleivosia. Em dois
milénios de vida cristã a posição é exactamente a inversa. Encíclicas,
concílios, sumas, sentenças, homilias, catecismos, Escrituras dizem que o sexo é
um dom maravilhoso, bem ou mal usado. Como a liberdade. A História regista a
ideia de que sexo é pecado, mas nos hereges, puritanos ou esotéricos, que a
Igreja sempre condenou.
Como é que um homem inteligente,
sensível e generoso diz um disparate destes? Nele, não pode ser ignorância ou
preconceito. O ataque soa claramente a defesa e autojustificação. Porque este
tempo apaixonado pela liberdade, este tempo corajoso e realizador, grande e
brilhante, nunca teve a grandeza de se pôr de joelhos e pedir perdão. Como
Madalena.