Público - 8 Jan 03
Estatísticas
Por JOAQUIM FIDALGO
Sempre me fez confusão a chamada "morte estatística". Lembro-me de, ainda
miúdo, ficar impressionado quando ouvia anunciar que "iam morrer" tantas
pessoas em acidentes na estrada, num dado período de tempo - a chamada
"operação Natal", por exemplo. Entre o perplexo e o ingénuo,
perguntava-me como era possível que as pessoas se
entregassem tão passivamente a um destino trágico
anunciado e nada fizessem para lhe trocar as voltas, para o
desmentir. E pensava: "Eles anunciam que vão morrer xis pessoas porque no
ano passado morreram xis pessoas e há dois anos morreram xis pessoas. Mas
se todas as pessoas, ao ouvirem este aviso, resolverem
ter o máximo cuidado na estrada, acaba por não morrer
ninguém... e as estatísticas erram! Sim, ninguém obriga
as pessoas a estarem antecipadamente condenadas a morrer num
acidente que, por definição, é acidental..."
A minha pueril vontade era, afinal, que isto das mortes por causas não
naturais não parecesse tão completamente à mercê de um destino
pré-determinado e que, pelo contrário, os homens fossem mais capazes, no
que depende deles, de contrariar fatalismos. Que raio são
as estatísticas para "garantir" que amanhã morrerão duas
pessoas e ficarão feridas mais 20 em 14 acidentes de
viação? Que raio são as estatísticas para anunciar que amanhã
teremos 14 acidentes de viação? Mas não é que, na prática, as
estatísticas acabam mais vezes por estar certas do que
erradas? É mesmo uma fatalidade? E nós não fazemos nada a
esse propósito? Ouvimos e esperamos? Entregamo-nos
docemente a esse fado pré-gravado e seja o que Deus quiser?...
É o mesmo com a fome no mundo e com a notícia monstruosa que lemos há dias.
Segundo previsões (lá está a estatística...) da ONU, no ano que agora
começa morrerão à fome, em África, 30 milhões de pessoas.
Sabe-se, portanto, antecipadamente que essas pessoas sem
nome estão condenadas a morrer nos próximos meses porque
se sabe de antemão que não vão ter que comer. E o que é
que acontece depois de sabermos isto? Nada. Espera-se pelo fim do ano para
confirmar se foram 30 milhões, ou 25, ou 35 e parte-se dessa estatística
cruel para uma ainda mais cruel no ano seguinte.
E, no entanto, impedir que uma pessoa morra à fome é simples. Basta dar-lhe
de comer. Não é como as doenças incuráveis, não é como a morte por
velhice, não é como um terramoto. Não. É muito simples de
resolver: dá-se de comer e a pessoa já não morre de fome.
Mas há anos que isto não se resolve, há anos que isto piora, quando as
condições científicas, tecnológicas, culturais, têm infinitamente mais
possibilidades de resolver os problemas básicos de quem mora no mundo. Há
anos que conhecemos mais e melhor estes números. Há anos que sabemos onde
está a fome nestas trágicas dimensões.
E há anos que as malfadadas estatísticas se repetem quase sem um
sobressalto. Como uma fatalidade. Medidas por homens, divulgadas por
homens, estudadas por homens, os mesmos homens que
descodificam o genoma, cindem o átomo e vão à Lua. Mas
não conseguem ir aqui ao lado, a África, levar pão.

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