A extrema-esquerda vive uma fase
paradoxal. De facto, a sua acção política, centrada em dois temas, segue uma
linha inversa em cada um deles. No clássico campo económico, apesar das novas
realidades, mantém a tradicional orientação restritiva, regulamentar e dirigista.
Mas no campo dos costumes, onde agora entrou em força, apregoa uma atitude
libertária, anárquica e des- controlada. Ouvimos esses activistas, por vezes no
mesmo fôlego, exigir restrições a actividades legítimas, como a compra de acções
ou contratações, enquanto intimam a liberdade total para actos criminosos, como
a compra de droga ou o aborto. Saltitam assim entre o estatismo mais férreo e o
individualismo mais extremo. Será incoerência?
Os ataques à lógica da esquerda são
antigos, como se vê por exemplo numa das linhas mais influentes. O modelo
original de Karl Marx foi acusado de infirmar da chamada «grande contradição», a
que só deu solução póstuma no volume III de
OCapital. Lenine
sofreu críticas por fazer a revolução na Rússia agrícola e tradicional, em
violação clara das teses do materialismo histórico. Estaline atingiu o máximo da
incoerência no pacto germano-soviético, enquanto vários líderes posteriores
tiveram de «meter o socialismo na gaveta». Mas estes casos, justificáveis no
pragmatismo, são menos graves que a actual dicotomia dirigista/liberal do
pós-guerra fria. Só que essa incongruência é apenas aparente.
Para compreender a situação actual, é
preciso ir ao fundo da posição da Esquerda. Aquilo que sempre a caracterizou,
dos antigos populistas aos modernos ecologistas, é a luta contra a opressão. O
propósito é emancipar escravos, reais ou imaginários. Foi isso que levou os maçons contra a Igreja, os jacobinos
contra o Antigo Regime, os republicanos contra a monarquia, os comunistas contra
o capitalismo. Em todos os casos é a quebra das cadeias que os motiva.
No século XX, o grande teatro de
opressão foi a empresa. O mecanismo económico, considerado tão degradante quanto
a escravatura, atraiu todos os seus ataques. A luta trouxe avanços notáveis, dos
sindicados às leis da concorrência, mas o veredicto último foi negativo. A
empresa capitalista é afinal a grande força impulsionadora do desenvolvimento e
a extrema-esquerda viu-se do lado errado da dinâmica histórica. O combate
mantém-se, motivado pela infame globalização, mas a esquerda caiu na famigerada
crise.
Compreendeu, porém, que se podia
reinventar ao replicar a velha lógica noutra instituição, a família.. Esta é a
sua novíssima linha política. Assumindo a família como a grande entidade
opressora de hoje, usou contra ela as práticas de sempre. Os paralelos entre o
velho combate contra a opressão patronal e o novo contra a opressão paternal são
evidentes. Em vez da «luta de classes», existe o «conflito de gerações» e a
«guerra dos sexos». A «ditadura do proletariado» foi substituída pelo liberdade
sexual absoluta. Em lugar das soluções empresariais revolucionárias (kolkhoz
e sovkhoz), defendem
as uniões de facto e homossexuais. Até os resultados sangrentos se repetem, com
o Gulag trocado pelas «salas de chuto», o aborto e a eutanásia.
A esquerda segue uma rígida coerência
em novos campos. Esta lógica, levada às últimas consequências, destruirá a nossa
vida íntima e social, como destruiu a economia na URSS. Porque a esquerda sempre
pôs a coerência acima das pessoas.