A transparência agrada pouco. É mais tranquilo
fazermos todos de conta que os duendes nos pagam o
SNS
Pão com Ómega-3. Infelizmente já não posso garantir
que o Pão São de Cereais com Ómega-3 faz bem ao
coração e o outro que tinha já não sei se Alfa ou
Beta faz bem às pernas. O que sei é que o acto de
comprar pão se tornou numa espécie de ida à
farmácia. Adeus pães saloios, mafras e alentejanos.
Agora temos o Ómega-3, mais o Prokorn, o pão são e
um pão qualquer que leva Alfa Amilase. Esta evolução
do alimento para o alimento-medicamento estava mais
ou menos anunciada e digamos que se enquadra numa
tendência global para vivermos de esguelha. Ou seja,
ninguém faz aquilo que é expectável que faça porque
entende que deve fazer uma outra coisa qualquer.
Logo os padeiros falam como os farmacêuticos, os
pais fazem de conta que são os melhores amigos dos
filhos, as escolas empenham-se em educar sexualmente
as mesmas crianças às quais desistiram de ensinar a
tabuada, as autarquias descobrem em si uma vocação
de organização de eventos... e tudo isto traz meio
país a fazer de conta que é outra coisa qualquer
menos aquilo que é suposto ser. O resultado seria
apenas anedótico caso não nos infernizasse a
existência, como o provam os casos seguintes.
O director que é director mas faz de conta que não é
director. Pode parecer complicado mas tal pessoa não
só existe como esta contradição insanável entre os
termos foi apresentada no PÚBLICO como uma revolução
na educação. Por outras e mais directas palavras: as
escolas públicas vão voltar a ter directores. Para
mostrar os "riscos e as vantagens" desta mudança, o
jornal entrevistou o director da Escola Secundária
de Paredes. Este encontra-se em exercício há um mês
mas a placa na porta do seu gabinete indica Conselho
Executivo e não Director. E segundo o director tal
não acontece por acaso: "A palavra 'director' tem um
peso histórico que perturba as pessoas". As mudanças
que estão a ser efectuadas na gestão das escolas são
demasiado importantes para que se faça de conta que
não estão a acontecer. Há quem se oponha a estas
mudanças. Há quem as defenda. O que não há é o
direito de fazer de conta que essas mudanças não
estão a acontecer.
Muito menos se entende como é que alguém se
candidata a um cargo que depois receia ou tem
vergonha de assumir, tanto mais que essa
ambivalência é meio caminho andado para o desastre.
Parafraseando Ferreira Fernandes, que ao assunto
dedicou uma crónica no Diário de Notícias, este
director quer mandar mas não quer que digam que ele
manda. Ou talvez queira fazer de conta que manda mas
na realidade não manda. Enfim pode brincar aos
directores que fazem de conta que são conselhos
executivos ou vice-versa. Escusava era de fazer
disso uma actividade profissional.
As taxas que não são moderadoras mas que se têm de
chamar assim. 12,43 euros foi quanto pagámos no meu
agregado familiar por uma operação de urgência, em
Santa Maria, a uma apendicite. Além da operação
propriamente dita, foram ainda dois dias de
internamento com tudo o que tal implica de
alimentação e cuidados de saúde. Os 12,43 euros
também pagaram as consultas de pós-operatório. 12,43
euros é menos do que um carregamento de telemóvel. E
claro que há uma lista imensa de pessoas que nem os
12,43 euros pagam por estarem isentas.
Dirão o PSD, o CDS e alguns deputados do PS que
ninguém modera o acesso a uma cirurgia de urgência
como era o caso desta. Pois não, mas isso não quer
dizer que não se deva pagar nada. Faria aliás muito
mais sentido que o CDS e o PSD, em vez de proporem a
extinção das taxas moderadoras para as cirurgias e
de embarcarem na cantilena do totalmente gratuito
com o PCP e o BE, apresentassem propostas mais
realistas e ousassem dizer que temos de nos deixar
dos artifícios de linguagem que têm mantido
intocável uma das mais profundas crenças do nosso
legislador: a do gratuito.
Para o legislador português, algures do outro lado
do mundo ou quiçá numa extremidade do arco-íris,
existe uma fábrica de dinheiro que envia o dito sob
a forma de moedas de ouro para Portugal. Uma vez
aqui chegadas, as bolsinhas das moedas são
depositadas ao cuidado do legislador, que, assim
provido de tais fundos, legisla sempre garantindo o
gratuito. De cada vez que promete algo gratuito, o
legislador olha-se ao espelho e sente-se uma boa
pessoa. Assim temos o ensino gratuito, em que, por
sinal, cada aluno custa em média 5 mil euros por
ano, e assistimos presentemente a uma discussão
bizantina sobre as taxas moderadoras na saúde.
Nesta matéria, o legislador brincou aos aprendizes
de feiticeiro e se hoje já quase ninguém recorda que
há pouco mais de trinta anos em Portugal se defendia
o fim da medicina privada sobra-nos ainda o dogma do
serviço nacional de saúde gratuito inscrito na
Constituição. Como até agora os contribuintes foram
as únicas almas que se apresentaram para pagar tudo
o que o legislador diz ser gratuito conviria um
bocadinho menos de demagogia. De caminho seria
também muito útil que os diversos serviços públicos
que, como as escolas e os hospitais, prestam
serviços oficialmente gratuitos informassem os
utilizadores do seu custo real. Por exemplo quanto
custou realmente aquela operação ao apêndice em
Santa Maria?
É claro que tanta transparência agrada pouco. É mais
tranquilo fazermos todos de conta que os duendes nos
pagam o SNS e que, como somos um povo tolinho, tipo
criancinhas que não param de comer gomas, quem nos
governa tem de criar umas taxas pedagógicas para nos
moderar nas idas aos hospitais.
Os autarcas que nacionalizaram o Carnaval. Um dos
momentos mais sérios e representativos da
esquizofrenia em que caímos aconteceu no recente
Carnaval: um autarca devidamente ladeado por um
homem seriíssimo mascarado de mulher, denunciava um
acto de censura no corso carnavalesco da sua cidade.
Todo o país falou do dislate do Ministério Público,
que, na verdade, temos grande dificuldade em
perceber o que investiga e como investiga, seja nos
casos de corrupção seja nos adereços dos carros
alegóricos.
Mas para lá desse óbvio ululante sobre o Ministério
Público, cabe perguntar o que fazia ali o autarca? É
o presidente da câmara o responsável pelo cortejo?
Não é o Carnaval uma festa popular? O Carnaval foi
sem dúvida uma festa popular e talvez ainda o seja
em alguns locais. Mas uma breve consulta ao portal
que disponibiliza informação sobre os ajustes
directos estatais permite concluir que de festa
popular o Carnaval passou a evento pago pelos
contribuintes. Esta estatização do Carnaval
agigantou os orçamentos destes festejos, trouxe do
Brasil escolas de samba com bailarinas que tiritam
de frio e, paradoxo dos paradoxos, pôs as autarquias
a dirigir uma festa que entre outras coisas
funcionava como um momento de transgressão e sátira
ao poder.
Mas enfim alinhemos meia dúzia de argumentos, do
género investimento para atrair turistas, para
justificar que um município invista 218 mil euros em
carros alegóricos como aconteceu este ano em Torres
ou 79 mil euros em "Desfile de Pais Natal 2008" como
fez a autarquia de Albufeira no último Natal. Tudo
isto se sofreria com mais alegria caso os autarcas
não demonstrassem um profundo e insuperável fastio
pelas tarefas para as quais são eleitos. O estado do
piso, as sarjetas partidas, os prédios - tantas
vezes municipais! - entaipados, a legislação sobre
as rendas... nada disso suscitou até hoje uma
intervenção tão séria a um autarca quanto a denúncia
de uma tentativa de censura no corso carnavalesco. E
sobretudo, aquela marafona, ao lado do senhor
presidente, tão séria no desconchavo da situação é o
melhor retrato de Portugal 2009.