Se o pior pode acontecer, então vai acontecer José Manuel Fernandes
Face à actual situação, é difícil não recordar a Lei
de Murphy. E o pior é que estamos muito longe de
saber sequer onde se encontra a saída para a crise
global. E os líderes mundiais também andam às
apalpadelas
Por vezes ouve-se dizer que a crise é culpa dos
jornalistas. Porquê? Porque, ao espalharem as más
notícias, abalam o clima de confiança em que se
baseia qualquer economia. Ora, como, dizem, esta é
sobretudo uma crise de confiança no sistema
financeiro, as "nossas" más notícias só contribuem
para agravar o que já está mal. Os leitores ficariam
inquietos...
Infelizmente, apesar de ser inegável que em todas as
crises existe um factor psicológico, desta vez os
jornalistas são os menos culpados. Porque é bem
possível que tudo esteja bem pior do que estes têm
escrito e do que os economistas têm anunciado. E
porque os tempos que estamos a viver não são tempos
normais.
A situação do sistema financeiro, nos Estados
Unidos, mas não só, não resulta apenas de um
problema de confiança, antes de os mecanismos de
crédito às economias terem sido levados muito para
além do razoável. Jacques Attali escreveu no Wall
Street Journal que "os bancos comerciais continuam a
emprestar 10 ou às vezes 15 vezes mais do que as
suas reservas, especialmente na Europa, isto quando
alguns deles estão em vias de desaparecer (...) pois
ninguém sabe quanto valem realmente os produtos
derivados que formam o núcleo duro dos seus
activos". Por isso, acrescentava, "o sistema
bancário global está à beira da falência" e o pior
dos cenários começa a ser o cenário mais provável.
Porquê? Porque o "crescimento das dívidas públicas
[justificado pelos mais diferentes planos de
salvação ou de estímulo] se soma às dívidas do
sector privado e isso só pode conduzir à
catástrofe".
Contudo, alertava Attali, "o problema é que os
responsáveis continuam a pensar que a crise é
passageira e que em breve regressaremos à velha
ordem: ninguém quer realmente assumir as mudanças
profundas que são necessárias para a resolver". O
que é tão preocupante que o antigo conselheiro de
François Mitterrand considerava no título do artigo
que "estamos a caminhar para Weimar global", uma
terrível previsão, se nos recordarmos que o
resultado do colapso da República de Weimar foi a
Alemanha nazi.
Dois textos de dois famosos economistas reforçaram,
nos últimos dias, a percepção de que não está a ser
feito tudo o que devia ser feito. Primeiro foi o
mais prestigiado dos comentadores do Financial
Times, Martin Wolf, a prever, de forma taxativa, que
o novo plano apresentado esta semana pela
Administração Obama "não conseguirá salvar os
bancos". Porquê? Porque no fundo, repetia,
aumentando a sua dimensão, receitas já testadas sem
grande sucesso, talvez porque, escrevia Wolf, a nova
administração "espere que agora tudo corra bem" em
vez de ter assumido que tudo pode correr pior.
Ontem, no Washington Post, Nouriel Roubini, um
professor de Nova Iorque hoje famoso porque foi o
único a prever com antecedência as dimensões da
actual crise, partia de uma constatação - "o sistema
bancário norte-americano está à beira da
insolvência" - para propor uma solução radical: a
nacionalização temporária de todos os bancos, à
imagem do que fizeram os suecos em 1992 sob a
liderança de um governo conservador.
É impossível a um leigo avaliar com seriedade a
bondade das propostas de figuras como Wolf ou
Roubini, ou até Attali, mas a sua convergência num
ponto é assustadora. E esse ponto é que não só a
situação é mais grave do que se pensa, como pode
piorar muito depressa sem que as lideranças
políticas e financeiras (incluindo os responsáveis
dos bancos centrais) tenham, até ao momento,
mostrado estar à altura. Pior: nalguns casos não só
se recusaram a admitir que a crise vinha aí
(Portugal, neste particular, deve mesmo constituir
um case study de como um governo não deve actuar),
como, logo a seguir, começaram a dar sinais de um
inquietante populismo proteccionista. É por isso que
não podemos apenas ficar quietos à espera que a
tempestade passe.
Num livro recente e muito oportuno, The Ascent of
Money, o historiador Niall Ferguson defende a tese
que os mecanismos que os sistemas financeiros foram
encontrando para fazer multiplicar o dinheiro
desempenhou, ao longo da história, um papel mais
importante para criar prosperidade para o maior
número do que, por exemplo, o desenvolvimento das
tecnologias. Sobretudo porque permitia inventar hoje
o que amanhã renderia dividendos, criando um ciclo
virtuoso que, mesmo sendo abalado por algumas
crises, teve sempre capacidade para se reinventar e
voltar a ser factor de progresso.
O factor multiplicador induzido pelos sistemas
financeiros - o que lhes permite fazer com que haja
mais dinheiro a circular do que o existente nas
reservas dos bancos - foi longe de mais (e, em
Portugal, nem fazemos ideia de se foi muito ou pouco
para além dos limites). Mas tem de voltar a
funcionar, razão por que é de um rasteiro populismo
algum tipo de ataques que tem sido feito
relativamente aos esforços para salvar a banca, cá e
lá fora.
A dúvida, a grande dúvida, não é porém a de saber se
se consegue voltar a colocar de pé um sistema
financeiro hoje de rastos. Nem sequer a de saber se,
pelo menos no curto prazo, os sistemas sociais
existentes são ou não capazes de "encaixar" os
custos humanos da crise. A grande dúvida é a de
tentar perceber se, depois da tempestade, não
seremos confrontados com algo que aflorou no Verão
passado e de que todos parecem estar esquecidos: uma
limitação global de recursos que, mesmo com milagres
tecnológicos, nos fará enfrentar uma sucessão de
crises como a suscitada pelo disparar do preço do
petróleo.
O mais prudente é assumir que a "velha ordem" das
sociedades afluentes não regressará, e tirar disso
as devidas consequências. A primeira é tornar claro
que não poderemos mais viver acima das nossas
possibilidades, acreditando que, no futuro, se
criará a riqueza necessária e suficiente para todos
e poderemos honrar as nossas dívidas. É como se o
ciclo histórico iniciado há uns 200 anos, com a
revolução industrial e o boom populacional, tivesse
chegado ao fim e necessitássemos de procurar novos
paradigmas para a ideia de "progresso material".