Público  - 16 Fev 09

 

Se o pior pode acontecer, então vai acontecer
José Manuel Fernandes

 

Face à actual situação, é difícil não recordar a Lei de Murphy. E o pior é que estamos muito longe de saber sequer onde se encontra a saída para a crise global. E os líderes mundiais também andam às apalpadelas

 

Por vezes ouve-se dizer que a crise é culpa dos jornalistas. Porquê? Porque, ao espalharem as más notícias, abalam o clima de confiança em que se baseia qualquer economia. Ora, como, dizem, esta é sobretudo uma crise de confiança no sistema financeiro, as "nossas" más notícias só contribuem para agravar o que já está mal. Os leitores ficariam inquietos...

 

Infelizmente, apesar de ser inegável que em todas as crises existe um factor psicológico, desta vez os jornalistas são os menos culpados. Porque é bem possível que tudo esteja bem pior do que estes têm escrito e do que os economistas têm anunciado. E porque os tempos que estamos a viver não são tempos normais.

 

A situação do sistema financeiro, nos Estados Unidos, mas não só, não resulta apenas de um problema de confiança, antes de os mecanismos de crédito às economias terem sido levados muito para além do razoável. Jacques Attali escreveu no Wall Street Journal que "os bancos comerciais continuam a emprestar 10 ou às vezes 15 vezes mais do que as suas reservas, especialmente na Europa, isto quando alguns deles estão em vias de desaparecer (...) pois ninguém sabe quanto valem realmente os produtos derivados que formam o núcleo duro dos seus activos". Por isso, acrescentava, "o sistema bancário global está à beira da falência" e o pior dos cenários começa a ser o cenário mais provável. Porquê? Porque o "crescimento das dívidas públicas [justificado pelos mais diferentes planos de salvação ou de estímulo] se soma às dívidas do sector privado e isso só pode conduzir à catástrofe".

 

Contudo, alertava Attali, "o problema é que os responsáveis continuam a pensar que a crise é passageira e que em breve regressaremos à velha ordem: ninguém quer realmente assumir as mudanças profundas que são necessárias para a resolver". O que é tão preocupante que o antigo conselheiro de François Mitterrand considerava no título do artigo que "estamos a caminhar para Weimar global", uma terrível previsão, se nos recordarmos que o resultado do colapso da República de Weimar foi a Alemanha nazi.

 

Dois textos de dois famosos economistas reforçaram, nos últimos dias, a percepção de que não está a ser feito tudo o que devia ser feito. Primeiro foi o mais prestigiado dos comentadores do Financial Times, Martin Wolf, a prever, de forma taxativa, que o novo plano apresentado esta semana pela Administração Obama "não conseguirá salvar os bancos". Porquê? Porque no fundo, repetia, aumentando a sua dimensão, receitas já testadas sem grande sucesso, talvez porque, escrevia Wolf, a nova administração "espere que agora tudo corra bem" em vez de ter assumido que tudo pode correr pior.

 

Ontem, no Washington Post, Nouriel Roubini, um professor de Nova Iorque hoje famoso porque foi o único a prever com antecedência as dimensões da actual crise, partia de uma constatação - "o sistema bancário norte-americano está à beira da insolvência" - para propor uma solução radical: a nacionalização temporária de todos os bancos, à imagem do que fizeram os suecos em 1992 sob a liderança de um governo conservador.

 

É impossível a um leigo avaliar com seriedade a bondade das propostas de figuras como Wolf ou Roubini, ou até Attali, mas a sua convergência num ponto é assustadora. E esse ponto é que não só a situação é mais grave do que se pensa, como pode piorar muito depressa sem que as lideranças políticas e financeiras (incluindo os responsáveis dos bancos centrais) tenham, até ao momento, mostrado estar à altura. Pior: nalguns casos não só se recusaram a admitir que a crise vinha aí (Portugal, neste particular, deve mesmo constituir um case study de como um governo não deve actuar), como, logo a seguir, começaram a dar sinais de um inquietante populismo proteccionista. É por isso que não podemos apenas ficar quietos à espera que a tempestade passe.

 

Num livro recente e muito oportuno, The Ascent of Money, o historiador Niall Ferguson defende a tese que os mecanismos que os sistemas financeiros foram encontrando para fazer multiplicar o dinheiro desempenhou, ao longo da história, um papel mais importante para criar prosperidade para o maior número do que, por exemplo, o desenvolvimento das tecnologias. Sobretudo porque permitia inventar hoje o que amanhã renderia dividendos, criando um ciclo virtuoso que, mesmo sendo abalado por algumas crises, teve sempre capacidade para se reinventar e voltar a ser factor de progresso.

 

O factor multiplicador induzido pelos sistemas financeiros - o que lhes permite fazer com que haja mais dinheiro a circular do que o existente nas reservas dos bancos - foi longe de mais (e, em Portugal, nem fazemos ideia de se foi muito ou pouco para além dos limites). Mas tem de voltar a funcionar, razão por que é de um rasteiro populismo algum tipo de ataques que tem sido feito relativamente aos esforços para salvar a banca, cá e lá fora.

 

A dúvida, a grande dúvida, não é porém a de saber se se consegue voltar a colocar de pé um sistema financeiro hoje de rastos. Nem sequer a de saber se, pelo menos no curto prazo, os sistemas sociais existentes são ou não capazes de "encaixar" os custos humanos da crise. A grande dúvida é a de tentar perceber se, depois da tempestade, não seremos confrontados com algo que aflorou no Verão passado e de que todos parecem estar esquecidos: uma limitação global de recursos que, mesmo com milagres tecnológicos, nos fará enfrentar uma sucessão de crises como a suscitada pelo disparar do preço do petróleo.

 

O mais prudente é assumir que a "velha ordem" das sociedades afluentes não regressará, e tirar disso as devidas consequências. A primeira é tornar claro que não poderemos mais viver acima das nossas possibilidades, acreditando que, no futuro, se criará a riqueza necessária e suficiente para todos e poderemos honrar as nossas dívidas. É como se o ciclo histórico iniciado há uns 200 anos, com a revolução industrial e o boom populacional, tivesse chegado ao fim e necessitássemos de procurar novos paradigmas para a ideia de "progresso material".