Público  - 10 Fev 09

 

Coelhinhos, Robin dos Bosques e Pinóquio, ou a política à portuguesa
José Manuel Fernandes

 

Quando se debate recorrendo a fábulas mais ou menos infantis é porque se deixou de acreditar na seriedade do combate entre ideias diferentes. E se prefere o disparate puro e duro

 

O saudoso Vítor da Cunha Rego manifestou, no prefácio do seu último livro, a sua "inquietação revoltada perante uma frase transformada em hino internacional e que representa o desprezo pela maturidade, o regresso à adolescência de milhões de adultos e a vitória do hemisfério não verbal do cérebro humano: 'We are the world, we are the children' - Nós somos o mundo, nós somos as crianças". Foi o seu derradeiro grito de revolta contra a infantilização do mundo e da política. Escrito muito, muito tempo antes destes dias que vivemos em que a infantilização já chegou ao ponto de reduzir tudo a absurdas fábulas infantis.

 

Francisco Louçã, que até é doutorado em Economia, deverá certamente corar a próxima vez que cruzar as portas da escola superior onde dá aulas. E com razão. Na verdade não encontrou melhor alegoria contra o capital do que, no palco da Convenção do Bloco de Esquerda, pôr-se a falar de coelhos. Estes, garante, se os metermos numa toca, reproduzem-se. Isto se, entretanto, forem alimentados, pormenor que esqueceu, já que os seus criadores, antes de terem coelhinhos para vender, terão de investir na alimentação dos progenitores. Ora para alimentá-los faria muito jeito aos criadores terem, por exemplo, acesso ao microcrédito que, por vezes, faz milagres só com as tais duas notas de 100 euros que o messias do Bloco meteu alegoricamente dentro de uma caixa. Mas se em vez de estarem nessa caixa, ou debaixo do colchão, estiverem num banco, os donos dos dois coelhos iniciais, com algum trabalho, até são capazes de sair da pobreza, como sucedeu a milhares de camponeses no Bangladesh, por exemplo.

 

Mas se os coelinhos de Louçã ainda podiam fazer sorrir as criancinhas e ainda nos fazem sorrir graças às múltiplas adaptações que já povoam o YouTube, o "milagre das Rosas" que José Sócrates vendeu no Porto vestindo a pele de um novo Robin dos Bosques que rouba aos ricos para dar aos pobres merece uma análise mais detalhada.

 

É certo que estamos em ano de eleições, e nestas alturas alguns são levados a pensar que vale tudo menos arrancar olhos, como no tempo em que andavam na escola. Pensam mal. Nem eles nem os eleitores são crianças e ninguém deve ser tomado por destituído, mesmo os que se entusiasmam, coitados, quando ouvem José Sócrates prometer que vai reduzir os benefícios fiscais dos ricos para os redistribuir pela "classe média".

 

Primeiro, é preciso ter muito descaramento para apresentar essa nova política como sendo "nuclear" à doutrina do PS para reduzir as desigualdades na mesma semana em que o partido que dirige fez aprovar no Parlamento várias alterações ao Orçamento do Estado e não se lembrou de tão genial ideia. O que significa que, não se aplicando a medida ao IRS de 2009, só se poderá aplicar ao IRS de 2010, e como estamos a falar de deduções à colecta, o seu acerto só se fará sentir no bolso dos contribuintes lá para meados de 2011, na melhor das hipóteses. Mas isso ainda seria o menos, se a medida inspirada pelo herói da floresta de Sherwood tivesse pés e cabeça, ou fosse exequível. Basta tentar encontrar uma definição para "rico" e fazer algumas contas para verificar que não é.

 

Comecemos por tentar estabelecer a fronteira da riqueza utilizando um critério deste Governo: o de que não se poderão pagar pensões superiores ao rendimento do Presidente da República. Acima desse valor, deduz-se, estaríamos a pagar pensões milionárias a "ricos". Assim definida, a fronteira dos "ricos" fica nos que declaram, para efeitos de IRS, mais de 100 mil euros por ano e por agregado familiar.

 

Ora se nos socorrermos dos últimos elementos disponibilizados pelo Ministério das Finanças, relativos à colecta de IRS de 2006, verificamos que apenas um por cento dos agregados familiares declararam rendimentos colectáveis acima da 100 mil euros, e que o imposto pago por essa pequena parte da população correspondeu a 10 por cento do total da colecta em sede de IRS. Louçã, suspeita-se, deverá subscrever o critério.

 

Só que se, a seguir, eliminarmos por completo as deduções realizadas por essa pequena fatia dos contribuintes, verificaremos que só conseguimos "poupar" o equivalente a 0,2 ou 0,3 por cento do que o Estado arrecada com o IRS. Pegando nesse pecúlio e distribuindo-o pelos agregados familiares da "classe média" (desde os que ficam imediatamente abaixo dos "ricos" até aos que auferem um rendimento bruto mensal na casa dos mil euros, um valor até generoso para muitos jovens licenciados), conseguimos devolver a cada agregado familiar uns 4,5 a 5 euros por mês. 15 a 18 cêntimos por dia. Às vezes a dividir por pai, mãe e respectivos filhos.

 

Ou seja, a promessa de reabilitar a classe média daria para nessas classes de rendimento um casal passar a poder beber mais uma bica por semana. E viva o Robin dos Bosques!

 

Perante tudo isto, o recurso pela JSD à imagem do Pinóquio para criticar o primeiro-ministro, aprecie-se ou não a paródia, até só pecará por distorcer um pouco a história em que se inspira. É que a líder do PSD não tem nem o cabelo alvo nem, sobretudo, o bigode branco do Gepeto, muito menos a protecção de uma fada madrinha, pois o melhor que lhe saiu foi um Tulius Detritus, esse especialista em intrigas e zaragatas que César enviou contra Astérix no tempo em que ainda não havia programas de comentário nas televisões aos domingos à noite...