Coelhinhos, Robin dos Bosques e Pinóquio, ou a
política à portuguesa José Manuel Fernandes
Quando se debate recorrendo a fábulas mais ou menos
infantis é porque se deixou de acreditar na
seriedade do combate entre ideias diferentes. E se
prefere o disparate puro e duro
O saudoso Vítor da Cunha Rego manifestou, no
prefácio do seu último livro, a sua "inquietação
revoltada perante uma frase transformada em hino
internacional e que representa o desprezo pela
maturidade, o regresso à adolescência de milhões de
adultos e a vitória do hemisfério não verbal do
cérebro humano: 'We are the world, we are the
children' - Nós somos o mundo, nós somos as
crianças". Foi o seu derradeiro grito de revolta
contra a infantilização do mundo e da política.
Escrito muito, muito tempo antes destes dias que
vivemos em que a infantilização já chegou ao ponto
de reduzir tudo a absurdas fábulas infantis.
Francisco Louçã, que até é doutorado em Economia,
deverá certamente corar a próxima vez que cruzar as
portas da escola superior onde dá aulas. E com
razão. Na verdade não encontrou melhor alegoria
contra o capital do que, no palco da Convenção do
Bloco de Esquerda, pôr-se a falar de coelhos. Estes,
garante, se os metermos numa toca, reproduzem-se.
Isto se, entretanto, forem alimentados, pormenor que
esqueceu, já que os seus criadores, antes de terem
coelhinhos para vender, terão de investir na
alimentação dos progenitores. Ora para alimentá-los
faria muito jeito aos criadores terem, por exemplo,
acesso ao microcrédito que, por vezes, faz milagres
só com as tais duas notas de 100 euros que o messias
do Bloco meteu alegoricamente dentro de uma caixa.
Mas se em vez de estarem nessa caixa, ou debaixo do
colchão, estiverem num banco, os donos dos dois
coelhos iniciais, com algum trabalho, até são
capazes de sair da pobreza, como sucedeu a milhares
de camponeses no Bangladesh, por exemplo.
Mas se os coelinhos de Louçã ainda podiam fazer
sorrir as criancinhas e ainda nos fazem sorrir
graças às múltiplas adaptações que já povoam o
YouTube, o "milagre das Rosas" que José Sócrates
vendeu no Porto vestindo a pele de um novo Robin dos
Bosques que rouba aos ricos para dar aos pobres
merece uma análise mais detalhada.
É certo que estamos em ano de eleições, e nestas
alturas alguns são levados a pensar que vale tudo
menos arrancar olhos, como no tempo em que andavam
na escola. Pensam mal. Nem eles nem os eleitores são
crianças e ninguém deve ser tomado por destituído,
mesmo os que se entusiasmam, coitados, quando ouvem
José Sócrates prometer que vai reduzir os benefícios
fiscais dos ricos para os redistribuir pela "classe
média".
Primeiro, é preciso ter muito descaramento para
apresentar essa nova política como sendo "nuclear" à
doutrina do PS para reduzir as desigualdades na
mesma semana em que o partido que dirige fez aprovar
no Parlamento várias alterações ao Orçamento do
Estado e não se lembrou de tão genial ideia. O que
significa que, não se aplicando a medida ao IRS de
2009, só se poderá aplicar ao IRS de 2010, e como
estamos a falar de deduções à colecta, o seu acerto
só se fará sentir no bolso dos contribuintes lá para
meados de 2011, na melhor das hipóteses. Mas isso
ainda seria o menos, se a medida inspirada pelo
herói da floresta de Sherwood tivesse pés e cabeça,
ou fosse exequível. Basta tentar encontrar uma
definição para "rico" e fazer algumas contas para
verificar que não é.
Comecemos por tentar estabelecer a fronteira da
riqueza utilizando um critério deste Governo: o de
que não se poderão pagar pensões superiores ao
rendimento do Presidente da República. Acima desse
valor, deduz-se, estaríamos a pagar pensões
milionárias a "ricos". Assim definida, a fronteira
dos "ricos" fica nos que declaram, para efeitos de
IRS, mais de 100 mil euros por ano e por agregado
familiar.
Ora se nos socorrermos dos últimos elementos
disponibilizados pelo Ministério das Finanças,
relativos à colecta de IRS de 2006, verificamos que
apenas um por cento dos agregados familiares
declararam rendimentos colectáveis acima da 100 mil
euros, e que o imposto pago por essa pequena parte
da população correspondeu a 10 por cento do total da
colecta em sede de IRS. Louçã, suspeita-se, deverá
subscrever o critério.
Só que se, a seguir, eliminarmos por completo as
deduções realizadas por essa pequena fatia dos
contribuintes, verificaremos que só conseguimos
"poupar" o equivalente a 0,2 ou 0,3 por cento do que
o Estado arrecada com o IRS. Pegando nesse pecúlio e
distribuindo-o pelos agregados familiares da "classe
média" (desde os que ficam imediatamente abaixo dos
"ricos" até aos que auferem um rendimento bruto
mensal na casa dos mil euros, um valor até generoso
para muitos jovens licenciados), conseguimos
devolver a cada agregado familiar uns 4,5 a 5 euros
por mês. 15 a 18 cêntimos por dia. Às vezes a
dividir por pai, mãe e respectivos filhos.
Ou seja, a promessa de reabilitar a classe média
daria para nessas classes de rendimento um casal
passar a poder beber mais uma bica por semana. E
viva o Robin dos Bosques!
Perante tudo isto, o recurso pela JSD à imagem do
Pinóquio para criticar o primeiro-ministro,
aprecie-se ou não a paródia, até só pecará por
distorcer um pouco a história em que se inspira. É
que a líder do PSD não tem nem o cabelo alvo nem,
sobretudo, o bigode branco do Gepeto, muito menos a
protecção de uma fada madrinha, pois o melhor que
lhe saiu foi um Tulius Detritus, esse especialista
em intrigas e zaragatas que César enviou contra
Astérix no tempo em que ainda não havia programas de
comentário nas televisões aos domingos à noite...