Em Portugal há gente que já se despede ao telefone a
enviar cumprimentos para os "senhores das escutas"
Realizados os sonhos europeus, Sócrates está de
regresso à pátria e já leva mês e meio de reencontro
difícil com o país zangado. Temia-se e aconteceu. Os
sonhos internos são muito mais difíceis de realizar.
Enganam-se os que pensam que a culpa do divórcio do
povo era só de Correia de Campos. Não era! É coisa
mais funda. Como Alegre bem sabe e como Alegre bem
diz. E como Alegre não deixará de aproveitar perante
o vazio à direita e o colapso da direita. Pelo
menos, se caírem no erro de o desafiar.
É cada vez mais duro o confronto entre o oásis dos
telejornais e a crise do dia-a-dia. É essa distância
entre os anúncios de mudança e a realidade
conseguida que faz crescer a impaciência e a
desconfiança. O ambiente claustrofóbico de compadrio
e cerco às liberdades faz o resto. Ajuda a cimentar
um estado de espírito que é, sobretudo, um misto de
revolta e frustração. Mais frustração que revolta,
que o povo está cada vez menos dado à reacção.
Em Portugal há gente que já se despede ao telefone a
enviar cumprimentos para os "senhores das escutas".
Dir-se-á que não é nada de mais. Partilham os
receios e angústias do procurador, sem se darem ao
trabalho de seguir os conselhos do respectivo
electricista. Isto que não diz tudo diz muito. Na
política, mesmo que o não seja o que parece é. A
parca elite pensante diz e a gente miúda sente que o
país já teve melhores dias. E teve. Embora não
tenham sido os tempos do "senhor D. Carlos" cujo
luto, atrasado de 150 anos, houve quem tentasse
fazer agora, a destempo, e a reboque da agenda
republicana/jacobina.
Soma-se que na economia as coisas não estão fáceis.
A crise internacional está longe de estar
ultrapassada. Fica-se com a ideia de que piora dia a
dia. Os preços do petróleo não cedem (Chavez ameaça
já com 200 dólares!) e a loucura energética puxa o
preço dos cereais. Da China, da Índia, da Rússia
surgem a cada minuto novas pressões consumistas,
novas ameaças estratégicas, um vendaval competitivo
para o qual não estamos preparados.
Na América o folclore das primárias apenas desvia as
atenções de uma série de acontecimentos dramáticos a
lembrar os anos 20. A crise do imobiliário e das
hipotecas "de lixo" colocam a ênfase sobre a
fragilidade de um sector financeiro do qual não se
sabe o que ainda virá a arrastar. Acresce a
destruição do emprego às centenas de milhares. O
sobreendividamento e o desemprego travam a confiança
e o consumo, que representa tão-só 70 por cento
riqueza total. Nem as medidas de emergência do
pacote Bush parecem travar a queda dos mercados.
Somam-se as megaintervenções realizadas por grandes
bancos centrais como sinal claro do pânico reinante.
Os rumores de falências e pré-falências correm da
América à Suíça, sem poupar a Grã-Bretanha, a França
e a Espanha. O BCE está num impasse: não sabe se
desce, se sobe as taxas de juro. Entre a necessidade
de fazer face à crise que põe em causa o crescimento
e a inflação que lhe corrói os fundamentals, venha o
diabo e escolha. No terreno os economistas sabem que
"se correr o bicho pega e se ficar o bicho morde".
Por cá, mesmo sem se conhecer a dimensão da crise,
já o governador clamava por uma alteração da
política de crédito, apelando a uma maior prudência.
Depois veio a crise internacional e, como se não
bastasse, juntou-se-lhe a crise do BCP, mostrando à
evidência a fragilidade do sector (regulação
incluída). Também por isso não há forma de fugir aos
juros altos.
Ora, o reverso da medalha de crédito mais escasso e
caro costuma ser um menor investimento, o que, em
fase de retoma incipiente, não é boa notícia.
Soma-se-lhe o facto de as famílias estarem a tal
ponto endividadas que a alta de juros acaba por
travar de forma igualmente intensa o consumo. Ao
contrário da Holanda, onde as famílias também estão
sobreendividadas, mas apenas 1 por cento dos
contratos são a taxa variável, a regra em Portugal é
a oposta. Eis a terrível diferença.
E ainda não se esgotou o rol das preocupações. Hoje
mesmo o INE deverá fornecer finalmente novos números
do desemprego. Tomara que sejam melhores, mas os
cálculos já revelados pela OCDE, e que apontam para
a manutenção nos 8,2, não auguram nada de muito
diferente.
Quanto ao anunciado regresso à convergência com a
Europa, depois de sete anos de contínuo afastamento,
o mais provável é que a meta caia e a divergência
continue por mais um ano.
Resta a consolidação. OK. Mas até aí surge a somar
ao imbróglio das Estradas, que ninguém consegue
perceber, o rabo de fora das receitas
"extraordinárias" (foram mais de 190 milhões de
receita orçamental excepcional obtidos só por via da
concessão da barragem do Alqueva!). Recusar que são
receitas "extraordinárias" para reconhecer, a
seguir, que são de facto "irrepetíveis" é simples
aversão à verdade. Nem sequer é um valor
escandaloso, pelo que não se entende a insistência
em desmentir o indesmentível, tornando o Governo
numa espécie de mentiroso compulsivo.
A mentira dos "sacos de plástico" foi a última e
exemplar. Só não disseram que nunca tinham pensado
na coisa, porque não podiam. A criação de um novo
imposto anual de vinte e tal euros (para um gasto de
dez saquinhos por semana...) não era uma ideia
brilhante. Mas eis a oposição a reeditá-la numa
prova de total insanidade. O povo que já cortou na
gasolina, no tabaco, no café... não tem trocos para
comprar mais retórica ambiental. Recuar foi, aliás,
um acto de inteligência por parte do Governo. O povo
detesta que o tomem por parvo!
No regresso à pátria, Sócrates vai ter de perceber
essa verdade elementar. Se disser a verdade e gerir
a política interna como a europeia, corre o sério
risco de ser reeleito com maioria absoluta por falta
de comparência de uma oposição credível, mas o
truque da mentirola fácil está esgotado.
Por mais que se calem, a medo, a maioria dos
opinadores e os senadores comentem as recentes
notícias do PÚBLICO com um grave "temos de acreditar
no senhor primeiro-ministro", logo estamos todos
convencidos de que não só foi o genuíno autor
daqueles mamarrachos, como nunca eles foram
encomendados e pagos a outro, que, por acaso, além
de seu amigo não os podia assinar por estar
legalmente impedido de o fazer.
Não é a letra de Sócrates que consta da parte
manuscrita dos projectos, mas a do seu amigo
funcionário da câmara? Os donos das obras garantem
que desconhecem a honra de ter Sócrates por autor
dos projectos das respectivas maisons? Garantem que
encomendaram, pagaram e trataram tudo apenas com "o
amigo" do primeiro-ministro? Que importa. Os
senadores em uníssono declaram, entre um piscar de
olhos, que no passa nada. Mas não acreditam. Ninguém
acredita. E o povo, disposto a perdoar qualquer
verdade, não gosta de ser comido por parvo quando
apanha "um grande" numa pequena falta. Já foi assim
na Independente, apesar dos incómodos da senhora
procuradora. Se os assessores não avisam Sócrates
desta verdade básica, talvez o próprio Sócrates
possa explicá-la aos assessores. Parece bastante
menos yes man de si próprio do que o seu staff.
Jornalista