Público - 15 Fev 08

 

Regresso ao país zangado
Graça Franco
 

Em Portugal há gente que já se despede ao telefone a enviar cumprimentos para os "senhores das escutas" Realizados os sonhos europeus, Sócrates está de regresso à pátria e já leva mês e meio de reencontro difícil com o país zangado. Temia-se e aconteceu. Os sonhos internos são muito mais difíceis de realizar. Enganam-se os que pensam que a culpa do divórcio do povo era só de Correia de Campos. Não era! É coisa mais funda. Como Alegre bem sabe e como Alegre bem diz. E como Alegre não deixará de aproveitar perante o vazio à direita e o colapso da direita. Pelo menos, se caírem no erro de o desafiar.

 

É cada vez mais duro o confronto entre o oásis dos telejornais e a crise do dia-a-dia. É essa distância entre os anúncios de mudança e a realidade conseguida que faz crescer a impaciência e a desconfiança. O ambiente claustrofóbico de compadrio e cerco às liberdades faz o resto. Ajuda a cimentar um estado de espírito que é, sobretudo, um misto de revolta e frustração. Mais frustração que revolta, que o povo está cada vez menos dado à reacção.

 

Em Portugal há gente que já se despede ao telefone a enviar cumprimentos para os "senhores das escutas". Dir-se-á que não é nada de mais. Partilham os receios e angústias do procurador, sem se darem ao trabalho de seguir os conselhos do respectivo electricista. Isto que não diz tudo diz muito. Na política, mesmo que o não seja o que parece é. A parca elite pensante diz e a gente miúda sente que o país já teve melhores dias. E teve. Embora não tenham sido os tempos do "senhor D. Carlos" cujo luto, atrasado de 150 anos, houve quem tentasse fazer agora, a destempo, e a reboque da agenda republicana/jacobina.

 

Soma-se que na economia as coisas não estão fáceis. A crise internacional está longe de estar ultrapassada. Fica-se com a ideia de que piora dia a dia. Os preços do petróleo não cedem (Chavez ameaça já com 200 dólares!) e a loucura energética puxa o preço dos cereais. Da China, da Índia, da Rússia surgem a cada minuto novas pressões consumistas, novas ameaças estratégicas, um vendaval competitivo para o qual não estamos preparados.

 

Na América o folclore das primárias apenas desvia as atenções de uma série de acontecimentos dramáticos a lembrar os anos 20. A crise do imobiliário e das hipotecas "de lixo" colocam a ênfase sobre a fragilidade de um sector financeiro do qual não se sabe o que ainda virá a arrastar. Acresce a destruição do emprego às centenas de milhares. O sobreendividamento e o desemprego travam a confiança e o consumo, que representa tão-só 70 por cento riqueza total. Nem as medidas de emergência do pacote Bush parecem travar a queda dos mercados.

 

Somam-se as megaintervenções realizadas por grandes bancos centrais como sinal claro do pânico reinante. Os rumores de falências e pré-falências correm da América à Suíça, sem poupar a Grã-Bretanha, a França e a Espanha. O BCE está num impasse: não sabe se desce, se sobe as taxas de juro. Entre a necessidade de fazer face à crise que põe em causa o crescimento e a inflação que lhe corrói os fundamentals, venha o diabo e escolha. No terreno os economistas sabem que "se correr o bicho pega e se ficar o bicho morde".

 

Por cá, mesmo sem se conhecer a dimensão da crise, já o governador clamava por uma alteração da política de crédito, apelando a uma maior prudência. Depois veio a crise internacional e, como se não bastasse, juntou-se-lhe a crise do BCP, mostrando à evidência a fragilidade do sector (regulação incluída). Também por isso não há forma de fugir aos juros altos.

 

Ora, o reverso da medalha de crédito mais escasso e caro costuma ser um menor investimento, o que, em fase de retoma incipiente, não é boa notícia. Soma-se-lhe o facto de as famílias estarem a tal ponto endividadas que a alta de juros acaba por travar de forma igualmente intensa o consumo. Ao contrário da Holanda, onde as famílias também estão sobreendividadas, mas apenas 1 por cento dos contratos são a taxa variável, a regra em Portugal é a oposta. Eis a terrível diferença.

 

E ainda não se esgotou o rol das preocupações. Hoje mesmo o INE deverá fornecer finalmente novos números do desemprego. Tomara que sejam melhores, mas os cálculos já revelados pela OCDE, e que apontam para a manutenção nos 8,2, não auguram nada de muito diferente.

 

Quanto ao anunciado regresso à convergência com a Europa, depois de sete anos de contínuo afastamento, o mais provável é que a meta caia e a divergência continue por mais um ano.

 

Resta a consolidação. OK. Mas até aí surge a somar ao imbróglio das Estradas, que ninguém consegue perceber, o rabo de fora das receitas "extraordinárias" (foram mais de 190 milhões de receita orçamental excepcional obtidos só por via da concessão da barragem do Alqueva!). Recusar que são receitas "extraordinárias" para reconhecer, a seguir, que são de facto "irrepetíveis" é simples aversão à verdade. Nem sequer é um valor escandaloso, pelo que não se entende a insistência em desmentir o indesmentível, tornando o Governo numa espécie de mentiroso compulsivo.

 

A mentira dos "sacos de plástico" foi a última e exemplar. Só não disseram que nunca tinham pensado na coisa, porque não podiam. A criação de um novo imposto anual de vinte e tal euros (para um gasto de dez saquinhos por semana...) não era uma ideia brilhante. Mas eis a oposição a reeditá-la numa prova de total insanidade. O povo que já cortou na gasolina, no tabaco, no café... não tem trocos para comprar mais retórica ambiental. Recuar foi, aliás, um acto de inteligência por parte do Governo. O povo detesta que o tomem por parvo!

 

No regresso à pátria, Sócrates vai ter de perceber essa verdade elementar. Se disser a verdade e gerir a política interna como a europeia, corre o sério risco de ser reeleito com maioria absoluta por falta de comparência de uma oposição credível, mas o truque da mentirola fácil está esgotado.

 

Por mais que se calem, a medo, a maioria dos opinadores e os senadores comentem as recentes notícias do PÚBLICO com um grave "temos de acreditar no senhor primeiro-ministro", logo estamos todos convencidos de que não só foi o genuíno autor daqueles mamarrachos, como nunca eles foram encomendados e pagos a outro, que, por acaso, além de seu amigo não os podia assinar por estar legalmente impedido de o fazer.

 

Não é a letra de Sócrates que consta da parte manuscrita dos projectos, mas a do seu amigo funcionário da câmara? Os donos das obras garantem que desconhecem a honra de ter Sócrates por autor dos projectos das respectivas maisons? Garantem que encomendaram, pagaram e trataram tudo apenas com "o amigo" do primeiro-ministro? Que importa. Os senadores em uníssono declaram, entre um piscar de olhos, que no passa nada. Mas não acreditam. Ninguém acredita. E o povo, disposto a perdoar qualquer verdade, não gosta de ser comido por parvo quando apanha "um grande" numa pequena falta. Já foi assim na Independente, apesar dos incómodos da senhora procuradora. Se os assessores não avisam Sócrates desta verdade básica, talvez o próprio Sócrates possa explicá-la aos assessores. Parece bastante menos yes man de si próprio do que o seu staff. Jornalista