A ideologia invisível do governo
João César das Neves
À primeira vista, o Governo Sócrates carece de
orientação ideológica. O socialismo saiu da gaveta
para o baú do sótão e os recuos, cedências,
compromissos e expedientes parecem revelar um
pragmatismo isento de princípios. Mas no que
realmente conta o actual Executivo tem seguido uma
linha doutrinal férrea e impiedosa, escondendo a sua
determinação clara debaixo de uma aparente bonomia.
Isto revela-se em pequenos sinais que escapam à
vigilância institucional. A nova ministra da Saúde
antes da posse afirmou algo espantoso: "Sempre
trabalhei no serviço público e é esse que eu
defendo" (SIC, 29/Jan.). Ela assume à partida que,
dos seus dois cargos - ministra de Portugal e
gestora do Serviço Nacional de Saúde-, já escolheu o
segundo. A sua preocupação central será, como aliás
os antecessores, a carreira dos médicos, não a saúde
dos doentes.
Esta frase descuidada vai ao centro do nosso drama
actual. O Estado existe para servir a sociedade, mas
se o aparelho cresce muito a partir de certa altura
ele passa a ser o seu próprio objectivo. Quando os
servidores públicos usam os seus poderes nacionais
para se servirem a si mesmos, a perversão é total. A
ideologia do Governo Sócrates esconde, debaixo de um
ataque exterior às regalias extremas do
funcionalismo, este propósito totalitário de
estatização.
Nisso o Governo é prudente e popular. Existe em
Portugal um consenso paternalista que considera os
serviços públicos, em si, bons e seguros. As
empresas, tendo fins lucrativos, exploram os
clientes enquanto os burocratas, com fins de
carreira, são eficazes. O modelo até é capaz de
funcionar com suecos, mas com lusitanos tem sido um
desastroso fiasco há séculos. Apesar disso, os
cidadãos apaticamente vão aceitando as múltiplas e
minuciosas investidas de nacionalização.
Parte-se da imagem que a saúde ou escola privadas
são mais caras que as públicas, o que é
evidentemente falso. Os custos dos serviços
particulares são visíveis e pagos pelos
utilizadores, enquanto os públicos, escondidos na
confusão do Orçamento, são também pagos pelos mesmos
contribuintes. Só que quando o pagador está a olhar,
as coisas são diligentes e económicas, enquanto os
desperdícios que a capa pública esconde são
impossíveis de medir.
No entanto os governos vêm usando os impostos que
retiram aos contribuintes para criar serviços que
competem com as escolhas dos mesmos contribuintes.
Tudo é feito com o pretexto de virtuoso serviço à
nação e com o aplauso de professores, médicos e
outros funcionários, que preferem a segurança
pública à maçada de ser julgados pelos resultados.
De facto estar no mercado, depender da satisfação
dos clientes e só receber quando se produz qualidade
é um grande aborrecimento.
Se é assim em todos os sectores, na Educação, cujo
objecto directo é a ideologia, o propósito ganha
novos contornos. Nas escolas trata- -se de formar as
consciências da juventude e o Estado não quer perder
esse precioso instrumento de poder. O cerco que tem
feito ao ensino privado e livre tem sido implacável
e cruel. A retirada dos subsídios aos ATL, a
construção de escolas do Estado junto a
estabelecimentos privados e outras medidas têm este
objectivo totalitário.
Mas a ideia vai mais longe. O secretário de Estado
da Educação defendeu-se de críticas recentes
afirmando: "Todas as escolas têm um coordenador da
educação para a saúde, na qual está envolvida a
educação sexual" (RR, 31/Jan.). Reduzir o sexo a um
problema sanitário é tão tonto como ver a Biologia
dentro da Física ou a Literatura na Gramática. Mas
esta frase não é tolice, é ideologia. Não se trata
de um erro, são ordens. Neste campo, como tantos
outros, a escola pública é veículo para as doutrinas
das luminárias do regime que, na História como no
Português, na Educação Sexual como na Economia,
impõem como verdades estabelecidas o que não passa
de preconceitos.
O aparelho público usa os seus poderes para
controlar, não para servir o público. O Governo
Sócrates não é socialista, reformador ou sequer
maçon. É só corporativo.