Diário  de Notícias - 16 Fev 07

 

Os pagadores de promessas

Maria José Nogueira Pinto


É melhor ganhar, mas é mais difícil. Quanta promessa feita em troca de uma vitória arrancada à dúvida! Quanta expectativa criada com a receita rápida de uma alteração legislativa! É agora, é agora... Já está, já está... Não custa nada.

Na noite do dia 11 comecei a ver a preocupação no rosto dos pagadores de promessas. Não me espantou. Sei que muitos são sérios e a preocupação é a expressão mais elementar da seriedade nesta questão. Senti que, sabidos os resultados, não me apetecia virá-los ao contrário. Fazer operações aritméticas que lembrassem que o Portugal do "sim" é menor que o Portugal do "não" e da abstenção ou que o resultado voltou a não ser vinculativo. Para quê, se eles sabem? Mais útil perguntar: e agora?

Entregue a pergunta (três em um) ao povo português, a resposta foi, nessa noite, devolvida ao poder político: Assembleia da República, poder judicial, Governo. Inexoravelmente. Aos partidos que fizeram o "sim", ao partido do "nim" (patético o presidente do PSD a declarar que a posição do partido foi igual à de 98), ao partido do "não". E devolvida também a todos os que ao longo deste debate foram compondo a aridez do argumentário, preço da máxima simplificação a que submeteram a questão, esbatendo os seus contornos e subtraindo da reflexão geral as matérias que, embora a jusante e a montante da pergunta, eram e são essenciais à concretização do "sim", à efectivação das expectativas criadas.

E é aqui que estamos. Com cautelas evidentes manifestadas de imediato pelo primeiro-ministro, os silêncios de outros ministros, as posições partidárias a demarcarem-se das governamentais e, facto curioso, a consideração de que o "não", pela força que lhe advém de ser genuinamente cívico, poder escapar às regras do velho jogo partidário, uma força com a qual não sabem bem como lidar.

A primeira dúvida surge no que diz respeito ao projecto-lei subjacente ao referendo, o que materializava a tão falada "alteração à lei" que, segundo o "sim", era a única coisa que estava em discussão. Será ele o projecto-lei 19/X do PS? Com ou sem as alterações introduzidas? Ou um outro a apresentar? É que não será despicienda uma ou outra solução. De facto, a primeira versão previa os centros de aconselhamento familiar incluídos na rede pública de cuidados de saúde, a organização dos estabelecimentos de saúde, o eventual acordo com estabelecimentos privados oficialmente reconhecidos e a obrigatoriedade de consulta médica.

Ora tudo isto desaparece com a subsequente proposta de alteração apresentada pelo PS. Votada na generalidade. Desconforme ao que disse Sócrates, conforme ao que diz o deputado Alberto Martins.

Mas a tal rede de aconselhamento tem como competências expressas dar informação, apurar da situação socioeconómica e laboral da mulher a fim de remover causas dessa natureza, com o apoio, naturalmente, dos serviços competentes da Segurança Social. Ora sabendo que nem a Saúde nem a Segurança Social têm um sistema integrado de informação, facto a que se soma uma considerável inércia burocrática, o eficiente funcionamento de tal rede parece irrealista.

Lembremos a evocação de boas práticas feita pelo primeiro-ministro na noite do referendo.

Quero crer que não fosse a madame da famosa clínica de los arcos a única inspiradora. Quero mesmo crer que fosse a legislação alemã nesta matéria e o seu mecanismo de aconselhamento e ajuda o ponto alto destas boas práticas em que Sócrates desejaria inspirar-se e inspirar a sua rebelde bancada.

Mas também registámos ao longo de toda a campanha o argumento, aliás insólito, de que seria pela via do aborto que leis, já em vigor mas de certo modo incumpridas, seriam finalmente postas em prática: planeamento familiar, leis laborais, lei da maternidade e paternidade, lei da adopção, educação sexual, etc... Segundo o "sim", o incumprimento devia-se ao obscurantismo do "não" e à Igreja! Ficamos pois à espera que esta maioria faça cumprir as leis, importantíssimas no combate ao aborto, agora sem falsos e fáceis álibis!

Ouvimos também Francisco Louçã lançar a primeira sugestão, que em breve veremos em toda a sua extensão, de cercear o direito inalienável à objecção de consciência. Não deixa de ser irónico que tal iniciativa venha dessa esquerda moderna e descomprometida, defensora absoluta das liberdades individuais.

Em suma, temos muito que ver no processo político e legislativo que se vai seguir. E, como sempre digo, não é legislar que nos torna modernos e civilizados. Legislar é facílimo, papel, tinta e pouco mais.