É melhor ganhar, mas é mais difícil. Quanta promessa
feita em troca de uma vitória arrancada à dúvida!
Quanta expectativa criada com a receita rápida de
uma alteração legislativa! É agora, é agora... Já
está, já está... Não custa nada.
Na noite do dia 11 comecei a ver a preocupação no
rosto dos pagadores de promessas. Não me espantou.
Sei que muitos são sérios e a preocupação é a
expressão mais elementar da seriedade nesta questão.
Senti que, sabidos os resultados, não me apetecia
virá-los ao contrário. Fazer operações aritméticas
que lembrassem que o Portugal do "sim" é menor que o
Portugal do "não" e da abstenção ou que o resultado
voltou a não ser vinculativo. Para quê, se eles
sabem? Mais útil perguntar: e agora?
Entregue a pergunta (três em um) ao povo português,
a resposta foi, nessa noite, devolvida ao poder
político: Assembleia da República, poder judicial,
Governo. Inexoravelmente. Aos partidos que fizeram o
"sim", ao partido do "nim" (patético o presidente do
PSD a declarar que a posição do partido foi igual à
de 98), ao partido do "não". E devolvida também a
todos os que ao longo deste debate foram compondo a
aridez do argumentário, preço da máxima
simplificação a que submeteram a questão, esbatendo
os seus contornos e subtraindo da reflexão geral as
matérias que, embora a jusante e a montante da
pergunta, eram e são essenciais à concretização do
"sim", à efectivação das expectativas criadas.
E é aqui que estamos. Com cautelas evidentes
manifestadas de imediato pelo primeiro-ministro, os
silêncios de outros ministros, as posições
partidárias a demarcarem-se das governamentais e,
facto curioso, a consideração de que o "não", pela
força que lhe advém de ser genuinamente cívico,
poder escapar às regras do velho jogo partidário,
uma força com a qual não sabem bem como lidar.
A primeira dúvida surge no que diz respeito ao
projecto-lei subjacente ao referendo, o que
materializava a tão falada "alteração à lei" que,
segundo o "sim", era a única coisa que estava em
discussão. Será ele o projecto-lei 19/X do PS? Com
ou sem as alterações introduzidas? Ou um outro a
apresentar? É que não será despicienda uma ou outra
solução. De facto, a primeira versão previa os
centros de aconselhamento familiar incluídos na rede
pública de cuidados de saúde, a organização dos
estabelecimentos de saúde, o eventual acordo com
estabelecimentos privados oficialmente reconhecidos
e a obrigatoriedade de consulta médica.
Ora tudo isto desaparece com a subsequente proposta
de alteração apresentada pelo PS. Votada na
generalidade. Desconforme ao que disse Sócrates,
conforme ao que diz o deputado Alberto Martins.
Mas a tal rede de aconselhamento tem como
competências expressas dar informação, apurar da
situação socioeconómica e laboral da mulher a fim de
remover causas dessa natureza, com o apoio,
naturalmente, dos serviços competentes da Segurança
Social. Ora sabendo que nem a Saúde nem a Segurança
Social têm um sistema integrado de informação, facto
a que se soma uma considerável inércia burocrática,
o eficiente funcionamento de tal rede parece
irrealista.
Lembremos a evocação de boas práticas feita pelo
primeiro-ministro na noite do referendo.
Quero crer que não fosse a madame da famosa
clínica de los arcos a única inspiradora.
Quero mesmo crer que fosse a legislação alemã nesta
matéria e o seu mecanismo de aconselhamento e ajuda
o ponto alto destas boas práticas em que Sócrates
desejaria inspirar-se e inspirar a sua rebelde
bancada.
Mas também registámos ao longo de toda a campanha o
argumento, aliás insólito, de que seria pela via do
aborto que leis, já em vigor mas de certo modo
incumpridas, seriam finalmente postas em prática:
planeamento familiar, leis laborais, lei da
maternidade e paternidade, lei da adopção, educação
sexual, etc... Segundo o "sim", o incumprimento
devia-se ao obscurantismo do "não" e à Igreja!
Ficamos pois à espera que esta maioria faça cumprir
as leis, importantíssimas no combate ao aborto,
agora sem falsos e fáceis álibis!
Ouvimos também Francisco Louçã lançar a primeira
sugestão, que em breve veremos em toda a sua
extensão, de cercear o direito inalienável à
objecção de consciência. Não deixa de ser irónico
que tal iniciativa venha dessa esquerda moderna e
descomprometida, defensora absoluta das liberdades
individuais.
Em suma, temos muito que ver no processo político e
legislativo que se vai seguir. E, como sempre digo,
não é legislar que nos torna modernos e civilizados.
Legislar é facílimo, papel, tinta e pouco mais.