Rescaldo da campanha: as duas culturas do nosso
tempo
Mário Pinto
Na raiz da polémica entre o sim e o não esteve uma
matricial divergência de compreensões acerca do
homem e da vida
Ao contrário do consenso que foi reivindicado pela
campanha do sim, penso que a sociedade portuguesa se
encontra muito dividida, como aliás se verificou nos
dois referendos e no Acórdão Constitucional mais
recente. Se algum consenso há, é que o aborto é
sempre um mal. Nos debates públicos também foi
consensual que ninguém deseja uma punição da mulher
que possa ser cruel; mas não foi consensual a
despenalização, pura e simples, do aborto. Isso não
foi.
A meu ver, a questão foi demagogicamente distorcida,
demonstrando-se mais uma vez as fragilidades do
instituto do referendo, o que não justifica a
negação da sua legitimidade e vantagens. Os adeptos
do sim ao aborto livre conseguiram que o
argumentário da campanha se centrasse nas desgraças
da mulher que aborta, causadas pela clandestinidade
e acrescentadas pela penalização legal.
Assim, em vez de se discutir o crime de aborto (isto
é, o seu desvalor) e, em consequência dele, a melhor
adequação da sua prevenção e repressão (e há mil
coisas que se podem fazer para apoiar e tratar a
mulher grávida sem por isso descriminalizar o
aborto), a argumentação centrou-se na crítica
abstracta à instauração de processo judicial e à
eventual aplicação de pena à mulher que aborta
voluntariamente, afirmando uma sempre injusta
vitimização da autora do crime. Ora, não se pode
afirmar que a mulher que aborta o faz sempre por
justificadas razões; e isso prova-se até com os
casos (excepcionais) de mães que maltratam e até
matam os filhos, depois de nascidos.
Desta forma, por mérito de uma hábil centração
psicológica dos debates nos sofrimentos da mãe,
dignos de compaixão, a morte violenta do filho
inocente, provocada por decisão arbitrária e
insindicável da mãe, por métodos por vezes bárbaros,
ficou na sombra e no olvido. E a prova disto é que
foi tabu falar e, mais ainda, descrever ou mostrar
imagens do aborto. Como explicar?
Penso que na raiz da enorme polémica entre o sim e o
não esteve uma matricial divergência de
pré-compreensões acerca do homem, da vida e do
mundo. É uma velha clivagem; mas porque, na era
actual da civilização ocidental, ela se tem
manifestado com maior evidência a propósito das
questões da vida, já foi reconduzida à alternativa
entre "uma cultura de vida e uma cultura de morte".
Sem dúvida, esta expressão é caricatural e, por isso
mesmo, sugestiva. Por mim, prefiro afirmar que, na
sua raiz mais profunda, a alternativa das opções
culturais é entre: a racionalidade e suas
consequências ainda que incómodas; ou a comodidade e
suas consequências ainda que irracionais. Ora, a
tendência mediática e ideológica do nosso tempo
progride em direcção à preferência da comodidade,
ainda que irracional.
"A razão débil"; "a razão indolente"; "a razão
cómoda", ou comodista; estas e outras expressões
começam hoje a circular pelos escritos dos filósofos
e dos cientistas sociais, sempre para apontar o
mesmo fenómeno detectado como característica
dominante da cultura dos nossos dias: a
desfalecência ou descrença da razão, e desde logo da
razão ética. Não é por acaso, e apenas por causa da
"guerra santa", que o Papa Ratzinger abriu, ou
reabriu, a frente decisiva de defesa da razão.
A indiferença pela morte do filho gerado chocou-me
nos defensores do sim; que, pelo contrário,
revelaram uma sensibilidade máxima, exclusiva e
obsessiva, pelos incómodos ou sofrimentos da mãe que
aborta, e sobretudo pela alegada violência da perda
da sua privacidade quando levada a juízo. Num tempo
em que por mil razões se tem comprimido o direito de
privacidade, implícita estava pois a ideia de que a
morte violenta do filho abortado, além de ser
legítima, ainda por cima é assunto privado, onde o
direito não deve entrar. Postulou-se que o filho,
quando condenado à morte pela mãe, não pode ter nem
defensor nem testemunha. Tal indiferença assumiu a
sua formulação mais extrema na tese em que a vida do
filho, para ser digna de protecção, deve ser
desejada. Não é possível ir mais longe na
desvalorização da vida humana. O que aliás foi
ilustrado, com a ironia do insulto, aos filhos
indesejados, de filhos do Código Penal - fórmula
esta pós-modernista de muito mau gosto.
Com esta dessacralização da vida, com esta violação
da vida, abre-se uma porta que não é possível fechar
para outras formas de violação, que começam a
alinhar-se. Perde-se o único critério substantivo,
que é o da inviolabilidade. Restarão apenas
arbitrários e ocasionais limites formais - como o
das dez semanas.
Quem resiste? Sobretudo os crentes, ouvi dizer. Os
adeptos do sim disseram muitas vezes que na questão
do aborto os católicos não deviam pretender impor
uma moral confessional num Estado laico. São
portanto os não crentes a identificar a fé religiosa
como inspiração da cultura de defesa intransigente
da vida. Com essa alegação, pretendem ilegalizar a
cidadania dessa cultura. Porém, sem razão. Foram os
católicos, inclusive os bispos, a dizer que a defesa
da vida vale por si mesma, no plano da laicidade,
com plena autonomia racional cultural; e que é neste
plano que os católicos intervêm.
A propósito, recordo que, numa entrevista que ficou
célebre, o famoso filósofo e jurista italiano
Norberto Bobbio, laico e liberal progressista,
expoente da luta pelos direitos humanos, pela
democracia e pela paz, afirmou que "o direito do
nascituro pode ser respeitado somente deixando-o
nascer", acrescentando: "surpreendo-me que os laicos
deixem aos crentes a honra de afirmar que não se
deve matar".
Não penso que os crentes desejem este monopólio; mas
não desdenham a honra.