Público - 10 Fev 07

 

Um dia que já não faz sentido

Paulo Ferreira

Pretender que os eleitores precisam de 24 horas absolutamente livres de informação sobre a campanha para meditar no voto que hão-de fazer é atribuir-lhes limitada capacidade de discernimento e fraca consistência na formação de opinião

O fenómeno é velho e global. Os legisladores tendem, muitas vezes, a tratar os cidadãos como seres globalmente diminuídos, que em inúmeras áreas precisam de uma protecção especial do Estado que, com paternalismo, lhe há-de ser dada pelas leis e pela sua aplicação.
Daqui até aos exageros na função reguladora do Estado vai um passo. Esta, que é importante e tende a constituir-se crescentemente como a função central do Estado, pode tornar-se num pesadelo, quando é levada longe de mais.
Também é frequente verificar-se que algumas regras impostas pela lei se tornam obsoletas com a mudança dos tempos. Numa época de aceleradas transformações sociais, culturais e tecnológicas, como nas duas últimas décadas, esse divergir é ainda mais evidente em muitas áreas.
Que o digam, por exemplo, os regimes políticos a quem a Internet tirou eficácia no controlo da informação que chega aos seus cidadãos. Ou a indústria de entretenimento, que está em fase de profunda adaptação à facilidade com que hoje se violam os direitos de autor com uma cópia de um CD ou DVD. Ou ainda os países, como Portugal, que têm leis que limitam o negócio do jogo a entidades devidamente autorizadas e assistem, com impotência, à proliferação de sistemas de apostas globais on-line que são legais num qualquer sítio do mundo.
O convencionado dia de reflexão pré-eleitoral, que hoje volta a cumprir-se em Portugal, é mais um filho desses fenómenos. Como o era, até ter acabado há poucos anos, o prazo de uma semana de jejum de sondagens que tinha que haver antes de cada acto eleitoral.
É provável que já tenha feito sentido nos primórdios da democracia, quando os debates eram mais acesos, as diferentes opções políticas mais extremadas e a comunicação social mais politizada e militante.
Mas hoje deixou de ter utilidade. A propaganda e informação publicada estão disponíveis na Internet para quem queira consultá-la, os e-mails e os SMS permitem chegar aos eleitores de forma massificada e anónima, atrapalhando a pacata reflexão. Mas, sobretudo, os eleitores são adultos e mais sensatos e ponderados do que, por vezes, muita gente quer fazer crer. Pretender que precisam de 24 horas completamente livres de ruído para meditar no voto que hão-de fazer é atribuir-lhes limitada capacidade de discernimento e fraca consistência na formação de opinião. E, que se saiba, a qualidade de uma democracia não depende da maior regulamentação das campanhas eleitorais.
Também não deixa de ser um contra-senso que, em nome de condições pretensamente laboratoriais de voto - primeiro duas semanas de intensa campanha, depois um dia sem qualquer informação para tudo digerir, depois decidir e por fim votar -, se sacrifique o pleno esclarecimento dos eleitores, que nunca vêem reflectidas nos jornais a análise das importantes últimas 24 horas de campanha.
Intimamente, e depois de longas semanas de campanhas ruidosas, podemos até gostar da paz mediática proporcionada por um dia em que não se pode fazer propaganda eleitoral. Se esse espírito for levado ao extremo acabam-se simplesmente as barulhentas mas essenciais campanhas eleitorais. E isso decerto ninguém defende. Paulo Ferreira