Responsabilidade é uma das palavras de ordem da
campanha do "sim". Votar "sim" - dizem - é ser
responsável. Apresentam este "sim" como única
solução para a despenalização da prática de aborto,
como única forma de pôr um ponto final no aborto
clandestino. E repetem - vezes sem conta - que é
isto e apenas isto que está em causa no referendo de
dia 11.
Mas aquilo que este "sim", que se diz responsável,
não esperava era que muitos portugueses percebessem
que, afinal, não é só isso que estará em causa no
dia 11. Aquilo que este "sim" não esperava é que
esta pergunta suscitasse - quando confrontada com as
evidências - tantas outras perguntas. Perguntas para
as quais este "sim" e a lei que oferece não
encontram respostas.
Hoje o "sim" já não utiliza as palavras de ordem de
98. Este conceito de responsabilidade vem substituir
a famosa frase "na minha barriga mando eu"; nem
vemos mulheres, como vimos em 98, declararem
orgulhosamente ter feito um aborto. O "sim" - o
mesmo "sim" de 98 - percebeu que não poderia fazer
esse tipo de campanha, ou utilizar esse tipo de
argumentos. Se o aborto clandestino, sobretudo pelos
riscos que lhe são associados, nos choca, o aborto
legal - violência irreversível sobre outro - também
nos choca. Porque temos hoje ainda mais certezas e
estamos mais próximos desse outro. Então este "sim",
que se diz responsável, arrancou do seu argumentário
a sequer consideração desse outro. Porque não pode
negar a sua existência, ele acaba por ser - numa
lógica de debate e ponderação de valores -
extremamente incómodo.
Será então responsável uma lei que - naquilo que é
um conflito de interesses e ponderação de valores -
ignora de forma absoluta uma das partes, a mais
vulnerável, negando-lhe qualquer condição ou
benefício de dúvida?
É uma lei que assenta numa negligência, não podendo
pois ser responsável.
Sabemos também que este "sim" oferece como única
resposta a liberalização e financiamento do aborto a
pedido até às dez semanas. A mãe que quer abortar
corre contra o tempo. Contra o prazo estabelecido
pela lei. Por isso esta lei não oferece - e muito
dificilmente poderia oferecer - aconselhamento,
tempo para reflexão e ponderação de outras soluções.
É por conseguinte uma lei cega. Uma lei que ignora
condições sociais e financeiras. Uma lei que não dá
tempo ou espaço para momentos de fragilidade,
vulnerabilidade, dúvida ou angústia.
Será então responsável uma lei que - para casos tão
distintos, protagonizados por mulheres tão
diferentes - a todos responde com o aborto? Resposta
rápida, única, legal e higiénica. E será esta a
resposta que as mulheres portuguesas querem ouvir?
Não esperarão elas mais que isso?
Este "sim" - dizem - acabará com o drama do aborto
clandestino, e afirmam, mesmo contra a evidência dos
números, que não irá contribuir necessariamente para
o aumento do número total de abortos. Sabemos bem
que, tal como no Reino Unido, em Espanha, em França
ou nos EUA, os números vão aumentar. Porque ao
número de abortos que se realizariam na
clandestinidade - e agora se realizarão em
estabelecimento de saúde autorizado - somar-se-ão os
milhares de abortos que serão feitos porque esta
prática passou a ser legal, livre e financiada. E
para além do aborto legal continuaremos a ter o
aborto ilegal: das mulheres que perderam a corrida
contra o tempo e abortam depois das dez semanas, das
mulheres que - pressionadas por um sentimento de
culpa ou embaraço - não se dirigem ao SNS, onde
terão de ser identificadas. Das jovens e
adolescentes que, sendo menores, continuarão a optar
pela clandestinidade a ter de enfrentar os seus
pais.
Será responsável uma resposta que - prometendo a
diminuição do número de abortos - acabará por
contribuir para o seu aumento exponencial?
Este "sim" responsável apresenta-se também - por
oposição ao "não" - como aquele que respeita a
dignidade das mulheres portuguesas. Este "sim" acusa
o "não" de má-fé. O "não", dizem - ao alertar para a
evidência comprovada de que o número de abortos,
após a liberalização, aumenta - parte do pressuposto
de que as mulheres abortarão de "ânimo leve". O
aborto não será utilizado como método anticonceptivo,
dizem. E neste ponto o "sim" não negligencia, não é
cego nem omite. O aborto não será utilizado como
método anticonceptivo, exactamente porque se
apresenta como solução pós-concepção. É que o "sim"
- que se diz responsável - pretende consagrar a
maternidade - após ser um facto - como uma opção. E
a mulher que - against all odds - decidir ser mãe em
condições emocionais, sociais ou financeiras
difíceis sê-lo-á por opção. Opção pela qual poderá
ser inteiramente responsabilizada. A maternidade -
direito e opção - é cada vez mais entendida na
segunda perspectiva.
O "não" - o "não" responsável - acredita que a
aposta deve ser feita antes. O "não" entende que não
se pode baixar os braços: são precisas mais e
melhores respostas. Educação sexual, planeamento
familiar, verdadeiras políticas de apoio à família.
Políticas que existem e funcionam nos países -
tantas vezes citados por este "sim" que se diz
responsável - e que têm legislações menos
restritivas em relação à prática de aborto. Se este
"sim", que é responsável, nos aponta outros países
como exemplo, que não esconda nem omita os outros
exemplos que talvez prefiramos seguir.
O "sim" - que se diz responsável - de que vos falo é
o "sim" efectivamente responsável por criar e
reforçar, neste momento, outras soluções que não o
aborto. De certa forma, ao oferecer- -nos esta
solução, este é o "sim" responsável que se
desresponsabiliza.