Público - 7 Fev 07

 

A Igreja, o poder e o dogma
Luís Cunha

 

O que preocupa a Teresa é a hipocrisia. A sua argumentação pode resumir-se na frase: "Eu não faria um aborto, mas não posso impor a prisão para quem o faz." Mas esse era o argumento dos esclavagistas: "Tu não és obrigado a ter escravos, se quiseres podes não os ter. Mas deixa-nos a nós, que queremos, mantê-los." Hipocrisia era manter dois tipos de seres humanos, os escravos e os não escravos. A mesma hipocrisia é, hoje em dia, manter dois tipos de seres humanos: os antes e os depois das dez semanas

Teresa de Sousa, jornalista conceituada pela qual tenho grande respeito, lançou um processo de intenções à Igreja Católica devido à posição desta no referendo ao aborto. Em conclusão e síntese, disse: "Não é a vida que a Igreja quer proteger. É apenas o dogma. Porquê? Para manter o seu poder sobre a sociedade e sobre as consciências."
Devo dizer que estou na Igreja Católica há pouco mais de 20 anos e nunca vi nela um projecto de poder, seja ele político, social, religioso, psicológico ou espiritual. Se o visse ou sequer o vislumbrasse, ter-me-ia ido embora imediatamente, e o mesmo teria certamente acontecido com os milhões de pessoas que seguiram Jesus Cristo através da sua Igreja durante os últimos 2007 anos.
Vi, nessa Igreja, vontade de servir o próximo elevada a expoentes que para mim eram impensáveis. Vi vontade de mudar em pessoas com feitios incríveis, egoísmos encarcerados e egos elevados à potência. Vi pessoas literalmente renascerem de angústias pessoais e existenciais que pareciam insuperáveis. Vi pessoas que conseguiram sobreviver a dramas incríveis e manter a sanidade mental e ainda a capacidade de dar.
Vi e senti na pele que essa Igreja não muda nada da vivência humana, excepto uma coisa: o sentido para a vida e para o sofrimento. E isso muda tudo.
Parece-me que aquilo que verdadeiramente preocupa a Teresa não é a Igreja, porque não a conhece. Do seu texto vê-se claramente que nunca a experimentou. Ou se calhar experimentou mas não conseguiu separar as fragilidades humanas daquilo que é verdadeiramente divino. Diz-se que Napoleão certa vez chamou o bispo de Paris para lhe dizer que queria acabar com a Igreja Católica. Ao que este teria respondido: "Mas como, se nem nós conseguimos dar cabo dela?"
Esta consciência da nossa fragilidade e dos nossos defeitos é o que torna, paradoxalmente, atractiva a pertença à Igreja. Porque ninguém te poderá expulsar dela, por maior que seja a porcaria em que tenhas tornado a tua vida.
O que preocupa a Teresa é a hipocrisia. A sua argumentação pode resumir-se na frase: "Eu não faria um aborto, mas não posso impor a prisão para quem o faz." Mas esse era o argumento dos esclavagistas: "Tu não és obrigado a ter escravos, se quiseres podes não os ter. Mas deixa-nos a nós, que queremos, mantê-los." Hipocrisia era manter dois tipos de seres humanos, os escravos e os não escravos. A mesma hipocrisia é, hoje em dia, manter dois tipos de seres humanos: os antes e os depois das dez semanas.
Mantenho o meu respeito pela Teresa. Fez-me ver melhor aquilo a que eu pertenço. Mas tenho pena se, por causa do seu preconceito, está a perder todo o bem que a Igreja tem para lhe dar. Mas não será isso uma consequência da liberdade humana? E a liberdade "é o maior dom que os céus concederam à terra". Católico, jurista