O referendo do próximo dia 11 de Fevereiro constitui
uma rara e grandiosa oportunidade de exercício da
democracia directa em Portugal.
Em tese, a questão que vai ser referendada podia ter
sido decidida pela Assembleia da República.
Mas, ao devolver aos eleitores o poder de decidir, a
Assembleia agiu bem.
Agora, a qualidade da decisão depende de todos nós,
isto é, da virtù do voto da maioria simples que se
vier a formar.
Para os gregos, e sobretudo para Sócrates, a virtù
consistia em cada um procurar ser habitual e
moralmente excelente. Para os renascentistas, e
sobretudo para Maquiavel, a virtù do Príncipe era a
inspiração dos súbditos e o fermento da grandeza da
Cidade.
Apliquemos este legado na formação do nosso voto.
Os partidários do "sim" e do "não" estão de acordo
em três pontos - não querem que as mulheres que
abortarem até às dez semanas sejam presas; querem
manter, na actual lei, o crime por aborto a partir
das dez semanas; e preferem que acabe todo e
qualquer aborto.
Em tudo o mais diferem, inclusive na semântica - o
"sim" fala em interrupção voluntária de gravidez e o
"não" em aborto.
Que diz a ciência médica?
Que hoje já é possível fazer nascer prematuros
saudáveis, ditos viáveis, com pelo menos 26 semanas.
E que diz a ciência genética?
Que a criação de uma vida é um processo contínuo e
que, a partir da nidificação, se decompõe em três
períodos - o período precoce, até à terceira semana
da gravidez, o embrionário, até à oitava, e o fetal,
a partir da nona e até ao nascimento.
Dir-se-á que a ciência ajuda, mas não resolve.
Que diz então o direito?
Como deve valorar este direito à vida?
Deverá valorá-lo mais, se o nascituro estiver no
período fetal, e menos, se o nascituro estiver nos
períodos precoce ou embrionário?
Seria absurdo que o fizesse (e a fortiori se
reservasse, como quer uma franja radical do "sim", a
valoração mais apenas para os nascituros fetais
ditos viáveis).
Assim, o que o direito pondera é a concorrência de
dois direitos - o direito do nascituro à vida e o
direito da mãe a dispor do seu corpo.
Qual deles deve prevalecer? Deve o direito reflectir
e obedecer a uma lógica da ética e dos afectos? E
que comportamentos individuais e práticas de
políticas sociais e de saúde deve induzir?
No plano ético, o direito à vida do nascituro deve
sempre prevalecer sobre o direito da mãe dispor do
seu corpo (salvo nas situações excepcionais
previstas na actual lei).
Reconhecendo isso, os partidários do "sim" também
preferem que acabe todo e qualquer aborto.
No plano dos afectos, todos reconhecem que a
ecografia do feto, pelas nove semanas, tem para a
mãe um valor afectivo inestimável.
Mas, estranhamente, os adeptos do "sim" não parecem
reconhecer que, para a mãe (e o pai) a primeira
ecografia, que é feita ao embrião, pelas sete
semanas, tem um valor afectivo porventura ainda
maior.
Para o direito pois, na lógica da ética e dos
afectos, a virtù está do lado do "não".
Quanto aos comportamentos individuais, todos
defendem estrita obediência aos métodos
contraceptivos e de protecção por preservativos em
relações sexuais não fiáveis.
Segue-se que toda a mulher informada e responsável
nunca abortará (caso falhe o método contraceptivo
que segue, usará a pílula abortiva do dia seguinte).
Todos querem também que haja acesso universal à
plena informação e a consultas de aconselhamento em
saúde.
Segue-se que, se tais políticas públicas forem
eficazes, toda a discriminação social que existe e
penaliza as mulheres mais pobres, desinformadas e
socialmente desfavorecidas desaparecerá.
Com o que, se tal for alcançado, a prática do aborto
terminará, porque todas as mulheres passarão a ser
informadas e responsáveis.
Dizem porém os partidários do "sim", e o
primeiro-ministro Sócrates em especial, que a sua
vitória no referendo é indispensável para acabar com
a vergonha nacional do aborto clandestino.
Porém, não só não é indispensável para acabar com
ele, como não induz um bom método para o combater.
Com efeito, passar a realizá-lo, e registá-lo, em
hospitais do SNS, significaria:
Que seria impossível garantir o sigilo, se o mesmo
fosse pedido, o que seria frequente;
Que, dada a insuficência estrutural da oferta, a
execução destes novos actos médicos aumentaria as
actuais listas de espera para cirurgias ou obrigaria
o SNS a pagar os respectivos preços em clínicas
privadas;
E que seria dado um sinal de condescendência laxista,
sobretudo às jovens adolescentes, empurrando-as, por
leviandade, para relações sexuais fortuitas
desprotegidas e substituídas pela pílula abortiva do
dia seguinte, e para o crescimento em flecha do seu
número de abortos, como aconteceu de resto em países
que seguiram esta via.
Mas há uma solução alternativa para acabar com o
aborto clandestino.
É perseguir, punir e fechar todos os
estabelecimentos de abortadeiras clandestinas que
pululam no país.
Tarefa simples e ao alcance de qualquer governo e
que o actual deverá concretizar, independentemente
do resultado do referendo.
Percorrido pois todo o caminho argumentativo, a
conclusão é inequívoca.
A virtù está, toda ela, do lado do "não".
E é por isso que junto o meu apelo e o meu voto aos
que lutam pela sua vitória. Deputado do PSD