Público - 6 Fev 07

 

A virtù do voto

O referendo do próximo dia 11 de Fevereiro constitui uma rara e grandiosa oportunidade de exercício da democracia directa em Portugal.
Em tese, a questão que vai ser referendada podia ter sido decidida pela Assembleia da República.
Mas, ao devolver aos eleitores o poder de decidir, a Assembleia agiu bem.
Agora, a qualidade da decisão depende de todos nós, isto é, da virtù do voto da maioria simples que se vier a formar.
Para os gregos, e sobretudo para Sócrates, a virtù consistia em cada um procurar ser habitual e moralmente excelente. Para os renascentistas, e sobretudo para Maquiavel, a virtù do Príncipe era a inspiração dos súbditos e o fermento da grandeza da Cidade.
Apliquemos este legado na formação do nosso voto.
Os partidários do "sim" e do "não" estão de acordo em três pontos - não querem que as mulheres que abortarem até às dez semanas sejam presas; querem manter, na actual lei, o crime por aborto a partir das dez semanas; e preferem que acabe todo e qualquer aborto.
Em tudo o mais diferem, inclusive na semântica - o "sim" fala em interrupção voluntária de gravidez e o "não" em aborto.
Que diz a ciência médica?
Que hoje já é possível fazer nascer prematuros saudáveis, ditos viáveis, com pelo menos 26 semanas.
E que diz a ciência genética?
Que a criação de uma vida é um processo contínuo e que, a partir da nidificação, se decompõe em três períodos - o período precoce, até à terceira semana da gravidez, o embrionário, até à oitava, e o fetal, a partir da nona e até ao nascimento.
Dir-se-á que a ciência ajuda, mas não resolve.
Que diz então o direito?
Como deve valorar este direito à vida?
Deverá valorá-lo mais, se o nascituro estiver no período fetal, e menos, se o nascituro estiver nos períodos precoce ou embrionário?
Seria absurdo que o fizesse (e a fortiori se reservasse, como quer uma franja radical do "sim", a valoração mais apenas para os nascituros fetais ditos viáveis).
Assim, o que o direito pondera é a concorrência de dois direitos - o direito do nascituro à vida e o direito da mãe a dispor do seu corpo.
Qual deles deve prevalecer? Deve o direito reflectir e obedecer a uma lógica da ética e dos afectos? E que comportamentos individuais e práticas de políticas sociais e de saúde deve induzir?
No plano ético, o direito à vida do nascituro deve sempre prevalecer sobre o direito da mãe dispor do seu corpo (salvo nas situações excepcionais previstas na actual lei).
Reconhecendo isso, os partidários do "sim" também preferem que acabe todo e qualquer aborto.
No plano dos afectos, todos reconhecem que a ecografia do feto, pelas nove semanas, tem para a mãe um valor afectivo inestimável.
Mas, estranhamente, os adeptos do "sim" não parecem reconhecer que, para a mãe (e o pai) a primeira ecografia, que é feita ao embrião, pelas sete semanas, tem um valor afectivo porventura ainda maior.
Para o direito pois, na lógica da ética e dos afectos, a virtù está do lado do "não".
Quanto aos comportamentos individuais, todos defendem estrita obediência aos métodos contraceptivos e de protecção por preservativos em relações sexuais não fiáveis.
Segue-se que toda a mulher informada e responsável nunca abortará (caso falhe o método contraceptivo que segue, usará a pílula abortiva do dia seguinte).
Todos querem também que haja acesso universal à plena informação e a consultas de aconselhamento em saúde.
Segue-se que, se tais políticas públicas forem eficazes, toda a discriminação social que existe e penaliza as mulheres mais pobres, desinformadas e socialmente desfavorecidas desaparecerá.
Com o que, se tal for alcançado, a prática do aborto terminará, porque todas as mulheres passarão a ser informadas e responsáveis.
Dizem porém os partidários do "sim", e o primeiro-ministro Sócrates em especial, que a sua vitória no referendo é indispensável para acabar com a vergonha nacional do aborto clandestino.
Porém, não só não é indispensável para acabar com ele, como não induz um bom método para o combater.
Com efeito, passar a realizá-lo, e registá-lo, em hospitais do SNS, significaria:
Que seria impossível garantir o sigilo, se o mesmo fosse pedido, o que seria frequente;
Que, dada a insuficência estrutural da oferta, a execução destes novos actos médicos aumentaria as actuais listas de espera para cirurgias ou obrigaria o SNS a pagar os respectivos preços em clínicas privadas;
E que seria dado um sinal de condescendência laxista, sobretudo às jovens adolescentes, empurrando-as, por leviandade, para relações sexuais fortuitas desprotegidas e substituídas pela pílula abortiva do dia seguinte, e para o crescimento em flecha do seu número de abortos, como aconteceu de resto em países que seguiram esta via.
Mas há uma solução alternativa para acabar com o aborto clandestino.
É perseguir, punir e fechar todos os estabelecimentos de abortadeiras clandestinas que pululam no país.
Tarefa simples e ao alcance de qualquer governo e que o actual deverá concretizar, independentemente do resultado do referendo.
Percorrido pois todo o caminho argumentativo, a conclusão é inequívoca.
A virtù está, toda ela, do lado do "não".
E é por isso que junto o meu apelo e o meu voto aos que lutam pela sua vitória. Deputado do PSD