Correio da Manhã - 2 Fev 07

 

Os heterodoxos

João Marques dos Santos

 

Manuel Pinho voou para a China, país da mão-de-obra paga a preço de trabalho escravo, e pediu que viessem investir em Portugal, porque por cá a mão-de-obra é barata! É o Camões do miserabilismo (tão bem representado no Governo) perdido no Oriente, a anunciar as desgraças que ele próprio potencia. Com tão grande inspiração, melhor estaria por cá, na campanha do referendo onde a asneira é livre e ninguém leva a mal.

Porque este é cada vez mais o referendo de todos os equívocos. Do princípio ao fim. O 1.º equívoco foi o de nos fazerem crer que as questões relacionadas com o aborto só por referendo poderiam ser resolvidas. Sócrates, que tanto deseja o aborto livre e não passa um dia sem reclamar o ‘sim’, não quis resolver o problema, porque a solução o colocaria em confronto directo com o Presidente a República, única pessoa que ele nunca afrontará neste País.

O 2.º equívoco é que a questão a que temos de responder (constitucionalíssima, pois então!) é já de si uma fraude. E não é por acaso. É porque os seus autores (pertencentes a todas as áreas políticas), de tanto desejarem que nada acontecesse e recearem o confronto com as verdadeiras questões que o aborto levanta, a quiseram assim. Confusa. Enganosa. Limitada.

E, por isto tudo, polémica. Para encobrir a asneirada. Os autores da pergunta não queriam soluções. Queriam bagunça e conseguiram-na. Seja qual for a resposta neste referendo, a solução será sempre geradora de novas perplexidades e problemas. Por isso temos ‘sins’ e ‘nãos’ para todos os gostos. Não é só o ‘não’ de Marcelo Rebelo de Sousa que é heterodoxo. São-no quase todos os ‘sim’ e muitos outros ‘não’. Sendo definitivamente pela despenalização, também nós, muito heterodoxamente, nos sentimos profundamente incomodados com as más companhias.

Com os opinadores que só opinam mentiras e apontam falsas pistas. Onde até professores universitários, jacobinos retardados, pontificam. Os aldrabões que até quando parecem esclarecer são profundamente artificiosos e nada sérios. E que nos empurram para uma demarcação muito clara por não desejarmos misturas com esta casta intelectualmente inimputável. A chefe de claque do ‘sim’, Edite Estrela é (disse-o ela) contra o aborto.

Mas a sua heterodoxia dá-lhe forças para todos os malabarismos. Para os quais pede sempre, no final do seu número, a gentil colaboração do ilustre público! Há melhor heterodoxia?

É pena que Marcelo Rebelo de Sousa não tenha tido a coragem de explicar devidamente que não é excepção nas suas opções heterodoxas. Ele, mau grado as suas profundas convicções éticas e religiosas (que são, afinal, as únicas que merecem respeito), como muitas dezenas de milhares de portugueses, está farto. Sabe que a penalização é uma farsa. Que abortos (penalizados ou não) continuarão a fazer-se clandestinamente. Que grande parte deles se farão sempre para além das dez semanas. E que, só por isso, já seria aconselhável despenalizá-los. Mas permitir a despenalização, juridicamente (única vertente em discussão), é só isso.

E pode nada ter a ver com quaisquer outras considerações. Mas, nas suas consequências, nunca será só isso. Como sabem todos os menos recomendáveis ‘ortodoxos’ do ‘sim’ que a seu tempo reclamarão o pleno.