Zenit - 28 Fev
06
Bases biológicas do início da
vida humana
Entrevista com doutora Anna Giuli, bióloga molecular
ROMA, terça-feira, 28 de fevereiro de 2006 (ZENIT.org).-
Bióloga molecular e professora de Bioética na Faculdade de Medicina da
Universidade Católica do Sagrado Coração (Roma), a doutora Anna Giuli publicou
um livro com o título «Início da vida humana individual. Bases biológicas e
implicações bioéticas» («Inizio della vita umana inviduale. Basi biologiche e
implicazioni bioetiche», Edizioni ARACNE).
Pela atualidade e o debate que o tema suscita na sociedade e as conseqüências
que já acarreta, Zenit conversou com a especialista.
– Por que se fala tanto da «questão» da vida humana pré-natal?
–Dra. Giuli: A vida humana pré-natal segue sendo um tema crucial para nossa
sociedade chamada a confrontar-se com os desafios de levar a cabo precoces
intervenções terapêuticas e diagnósticos sobre o embrião e sobre o feto, a
produção de embriões «in vitro» para a superação da esterilidade ou de riscos
genéticos, a utilização de embriões para obter células-tronco para seu emprego
no âmbito da medicina regenerativa, a pesquisa com embriões com fins de
investigação ou sua clonagem, são alguns dos mais discutidos filões biomédicos,
que tem como protagonista o individuo humano nas fases precoces de seu
desenvolvimento.
Quem é o embrião humano? É um sujeito, um objeto, um simples amontoado de
células? Que valor tem a vida humana precoce? É lícito manipulá-la ao menos nos
primeiros estágios de seu desenvolvimento? Que grau de tutela outorgar-lhe?
Estes são os interrogantes que vão no centro do atual debate sobre o início da
vida humana; poder proporcionar uma resposta amplamente compartilhada é
fundamental pelas relevantes implicações não só no campo de saúde, mas para toda
a sociedade e para o próprio futuro do homem.
Estas questões não só interpelam o biólogo, o especialista em bioética ou o
legislador, mas cada um de nós, simples cidadãos, chamados a nos expressar em
matérias delicadas e complexas, como sucedeu no ano passado com o tema da
fecundação artificial (na Itália. Ndr) ou como está ocorrendo nestes meses, com
a pesquisa sobre a pílula abortiva RU486. O amplo debate, freqüentemente com
tons confusos, suscitado por estes temas, revelou a necessidade de uma
informação cada vez mais clara e objetiva para enfrentar com conhecimento e
consciência crítica os novos desafios éticos e sociais do progresso
biotecnológico.
Resulta então importante esclarecer antes de tudo a natureza biológica do ser
humano e de suas origens, graças à contribuição dos numerosos estudos
embriológicos, genéticos e biomoleculares que nos últimos anos permitiram
descobrir os mecanismos mais íntimos do desenvolvimento inicial do individuo
humano.
– O que se entende por início da vida humana «individual»?
–Dra. Giuli: Algumas correntes de pensamento afirmam que a existência de um
indivíduo humano «verdadeiro» ao qual pode-se dar «nome e sobrenome» começa em
um momento sucessivo em relação à concepção, e que até esse momento aquela «vida
humana» não pode ter a dignidade, ou ainda o valor (e portanto a tutela) de
qualquer outra pessoa.
Na biologia cada «indivíduo» se identifica no organismo cuja existência coincide
com seu «Ciclo vital», isto é, «a extensão no espaço e no tempo da vida de uma
individualidade biológica». A origem de um organismo biológico coincide,
portanto, com o início de seu ciclo vital: é o início de um ciclo vital
independente o que define o início de uma nova existência biológica individual
que se desenvolverá no tempo atravessando várias etapas até chegar à maturidade
e depois à conclusão de seu arco vital com a morte.
Sobre a base dos dados científicos disponíveis atualmente, é portanto importante
analisar a possibilidade de identificar o evento «crítico» que marca o início de
um novo ciclo vital humano.
– Quando começa a vida?
–Dra. Giuli: Um novo indivíduo biológico humano, original em relação a todos os
exemplares de sua espécie, inicia seu ciclo vital no momento da penetração do
espermatozóide no ovócito. A fusão dos gametas masculino e feminino (chamada
também «singamia») marca o primeiro «passo geracional», isto é, a transição
entre os gametas – que podem considerar-se «uma ponte» entre as gerações – e o
organismo humano não-formado. A fusão dos gametas representam um evento
«crítico» de «descontinuidade» porque marca a constituição de uma nova
individualidade biológica, qualitativamente diferente dos gametas que a geraram.
Em particular, a entrada do espermatozóide no ovócito provoca uma série de
acontecimentos, estimáveis do ponto de vista bioquímico, molecular e
morfológico, que induzem a «ativação» de uma nova célula – o embrião unicelular
– e estimulam a primeira cascata de sinais do desenvolvimento embrionário; entre
as muitas atividades desta nova célula, as mais importantes são a organização e
a ativação do novo genoma, que ocorre graças à atividade coordenada dos
elementos moleculares de origem materna e paterna (fase pronuclear).
O novo genoma está, portanto, já ativo no estagio pronuclear assumindo de
imediato o controle do desenvolvimento embrionário; já no estagio de uma só
célula (zigoto) se começa a estabelecer como sucederá o desenvolvimento
sucessivo do embrião e a primeira divisão do zigoto influi no destino de cada
uma das duas células que se formarão; uma célula dará origem à região da massa
celular interna ou embrioblasto (de onde derivarão os tecidos do embrião) e a
outra ao trofoblasto (de onde derivarão os tecidos envolvidos na nutrição do
embrião e do feto). A primeira divisão do zigoto inclui, portanto, no destino de
cada célula e, em definitivo, de todos os tecidos do corpo. Estas evidências
declaram que não é possível dar espaço à idéia de que os embriões precoces sejam
um «monte indiferenciado de células».
Alguns fenômenos, como a possibildiade de formar os gêmeos monozigóticos durante
as primeiras fases do desenvolvimento embrionário, não anulam a evidência
biológica da «individualidade» estabelecida na fusão dos gametas, em todo caso
trazem à luz a capacidade de compensação de eventuais danos ou erros no programa
de evolução embrionária. O embrião humano precoce é um sistema harmônico no qual
todas as partes potencialmente independentes funcionam juntas para formar um
único organismo.
Em conclusão, dos dados da biologia até hoje disponíveis se evidencia que o
zigoto ou embrião unicelular se constitui como uma nova individualidade
biológica já na fusão dos dois gametas, momento de ruptura entre a existência
dos gametas e a formação do novo individuo humano. Desde a formação do zigoto se
assiste a um constante e gradual desenvolvimento do novo organismo humano que
evoluirá no espaço e no tempo seguindo uma orientação precisa sob o controle do
novo genoma já ativo no estágio pronuclear (fase precoce do embrião unicelular).
– O progresso biotecnológico influiu tanto em nosso modo de pensar e em
nossos estilos de vida que frequentemente se ouve falar de «terceira cultura».
De que se trata?
–Dra. Giuli: Alguns sociólogos definiram a cultura contemporânea como a
«terceira cultura», na qual tem predomínio a tecnologia, entre os princípios
desta nova cultura fundamental está a idéia de que não há nada fora do universo
tangível, que o homem é um organismo não qualitativamente diferente de qualquer
outro animal – e, portanto, reduzido só a sua realidade corpórea.
No campo científico se afirma que a ciência e a tecnologia são nossas: já que a
essência da ciência é a objetividade, todo obstáculo ao progresso científico é
como uma limitação a tal objetividade; como conseqüência não devem se pôr
restrições à atividade científica e ao progresso tecnológico. Fala-se de
«ciência do possível», que considera justo e bom tudo o que é tecnicamente
possível e que não aceita mensagens de orientação ou de estímulo por parte de
sistemas de pensamento de ordem antropológica ou ética.
Se o homem e toda a realidade biológica são fruto de uma evolução cega, não
existem critérios segundo os quais conformar a atuação, e toda a realidade
natural é só matéria a disposição do homem. Conseqüentemente, tudo o que é
possível se converte em lícito e todo limite é um obstáculo que há que se
superar. Daí resulta um grande impulso a não contentar-se por princípios éticos,
em outras palavras, pelo sentido de responsabilidade. Uma atitude que pode ser
muito perigosa.
Ao crescimento das possibilidades de auto-manipulação do homem, deverá
corresponder-lhe um igual desenvolvimento de nossa «força moral» para
permitir-nos proteger e tutelar a liberdade e dignidade própria e alheia.
– Por que se diz que o embrião humano tem dignidade própria?
–Dra. Giuli: Em nossa cultura está mudando o sentir comum em respeito ao ser
humano, sobretudo nos momentos mais emblemáticos e vulneráveis de sua
existência, induzindo uma tendência para um gradual «desalojamento» do valor da
vida que cada vez vai arraigando mais no tecido social e legislativo da cultura
ocidental, historicamente berço dos direitos humanos.
Segundo esta tradição cultural, como se afirma – entre outros lugares – no
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, o ser humano é
o valor do qual se originam e para o qual se dirigem todos os direitos
fundamentais; qualquer outro critério de ordem cultural, política, geográfica ou
ideológica resultaria redutivo e arbitrário. A pertença à espécie humana é o
elemento suficiente para atribuir a cada um sua dignidade.
A tradição cultural dos direitos humanos teve, também, uma profunda incidência
na reflexão biomédica contribuindo à afirmação mais vigorosa dos direitos do
homem também na medicina, através da elaboração dos códigos de deontologia
médico-profissionais e do desenvolvimento dos direitos do enfermo para
assegurar-lhe a autonomia e evitar abusos indevidos. É então oportuno não
desconhecer esta tradição e valorizar suas lógicas conseqüentes em relação ao
tema do início da vida humana no âmbito biomédico.
O embrião humano precoce é um indivíduo em ato com a identidade própria da
espécie humana à qual pertence, e consequentemente devem ser reconhecidos seus
direitos de «sujeito humano» e sua vida deve ser plenamente respeitada e
protegida.
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