Público - 24 Fev 06
Inumanidades?
José Manuel Fernandes
É bom nunca esquecer como é finíssima a linha que separa a vida civilizada da
inumanidade brutal Um grupo de jovens mata no Porto um
toxicodependente. E nos hospitais portugueses são
cada vez mais os idosos que aí entram doentes e para
lá ficam, abandonados pelas famílias. A primeira
notícia chocou ontem o país. A segunda confirma os
seus hábitos. Ambas são sinais dos tempos que
vivemos e dos homens que somos.
Explicar o comportamento dos jovens não é fácil, mas
os especialistas não se mostraram surpreendidos com
o que aconteceu e confirmaram a ideia de que o que
se passou no Porto não foi um apenas acidente, um
excesso ou um azar. Que, pelo contrário, são cada
vez mais frequentes as situações de delinquência
juvenil que têm como alvo indivíduos frágeis e
isolados. Em Portugal como na Europa. E que cá como
lá essas manifestações de violência são apenas uma
outra face do tipo de comportamentos que associamos
aos gangs juvenis. A diferença, desta vez, é que o
grupo não se formou num bairro de imigrantes
africanos, mas no interior de uma instituição de
solidariedade social destinada a acolher menores em
risco.
A violência de grupo, mesmo podendo ocorrer com mais
facilidade quando os adolescentes cresceram
desacompanhados em ambientes degradados não é,
contudo, um fenómeno que possamos limitar à pobreza
e às disfunções sociais. Até porque assume outras
formas que se encontram quase legitimadas
socialmente, como sucede entre as claques
desportivas, elas mesmo apenas a vanguarda das
massas que enchem estádios e lá dentro se
transfiguram, urrando e gesticulando como há dois
milénios se fazia no Circo Máximo de Roma, no
momento de decidir a sorte dos gladiadores, tal como
se lembra na alegoria com que o jornal The Observer
iniciava domingo o seu retrato de um "portuguese man
of war", José Mourinho.
Nesses tempos remotos, tal como nos modernos
estádios, mas também nos engarrafamentos ou no seio
da mais educada família, no fundo de uma viela
escura de um bairro social do Porto ou de um guetos
de imigrantes em Lisboa, são muitas, são demasiadas,
as vezes em que se quebra a finíssima e quase
invisível linha que separa a convivência civilizada
entre seres humanos da violência sem sentido e sem
proveito. Mesmo sendo essa linha finíssima a que não
pode ser atravessada para se viver de forma
agradável, feliz, sem medos, sem grades nas janelas
ou armas escondidas.
De certa forma, a violência silenciosa que todos os
dias dezenas de famílias praticam quando abandonam
um dos seus idosos num hospital, violência para que
encontram muitas "justificações", é apenas outra
face da mesma natureza humana. É a inumanidade que,
se não for contrariada de forma permanente,
sobreleva o que preferimos ver como o carácter único
destes seres a que chamamos humanos. Não discutam,
pois, apenas castigos, molduras penais, modalidades
de inquérito, meios à disposição de instituições
como aquela de onde saíram os jovens, ruínas urbanas
ou, até, as culpas das famílias. Entenda-se antes
que o nosso lado sombrio pode emergir a todo o
momento e que só o domesticamos com regras, com o
estabelecimento de limites, com o percebermos que a
maior manifestação de virtude é a autocontenção. Com
apreendermos o sentido mais profundo da palavra paz,
o que lhe deu Santo Agostinho: tranquilidade na
ordem, sendo que, se a ordem começa nos nossos
sentimentos, a tranquilidade resulta de vivermos bem
na pele que temos.
Àqueles rapazes esse caminho difícil nunca terá sido
mostrado. Isso não os desculpa, não "explica" o que
fizeram nem os deve salvar do castigo. Mas dá-nos
pistas para combater a incivilização, que é para
onde sempre nos puxa a nossa congénita inumanidade.
 |