Público - 20 Fev 06

 

Biscoitos para cão

Graça Franco

Christine Drummond é fundadora e proprietária da Mighty Mix uma firma neozelandesa de biscoitos para cão. Deve ser uma boa empresária. Confessou ao Jornal Nation, do Quénia, que considera o sabor dos seus biscoitos tão agradável e os acha de tal forma nutritivos que os come "todas as manhãs". Numa fábrica como a sua não seria exigível tal controle de qualidade. Mas, talvez assim, a associação do sector passe a incluir o seu procedimento na lista de "boas práticas". O código de conduta para associados, poderá estipular assim: " os nossos produtos devem poder ser saboreados por nós ao pequeno-almoço e procurados pelo nosso staff em alternativa a uma refeição ligeira". A senhora Drummond poderá até lançar, sem escândalo, uma campanha publicitária do tipo "os biscoitos para cão que o dono devora!"
Eu própria, no último Verão, fui apanhar um dos meus filhos deliciado com uns novos cereais descobertos na dispensa dos tios. Retirei-lhe a caixa da mão num gesto de horror acompanhado do grito: não come! Isto é comida para chinchilas! O tio (veterinário!) atalhou tranquilo: "pode comer, são multivitaminados!". Garanto-vos que ninguém obrigou o Afonso a vomitar. Não veio dali mal ao próprio nem ao mundo.
Dito isto, não me escandaliza que os neo-zelandeses partilhem com os cães os respectivos biscoitos. O que me escandaliza, o que nos devia ter escandalizado a todos mas passou desapercebido numa breve do Diário Digital, de há duas semanas, foi o facto da senhora ter doado 42 toneladas dos seus biscoitos, através de uma ONG, para minorar a fome das crianças do Quénia. Ainda que ela garanta que não o fez por mal, nem sob a designação de "biscoitos para cão" mas sim de " suplemento nutricional". Ao menos isso!
A mudança de designação não chegou para evitar a indignação das autoridades locais que recusaram a oferta alegando polidamente que "por nenhuma razão se pode permitir alimentar pessoas com comida para cães". A razão era, na sua crueldade, esta: os cães da Nova Zelândia alimentam-se muito melhor do que as crianças do Quénia. E nós não morremos de vergonha perante esta verdade.
Ainda bem que no Quénia falta comida mas sobra bom senso! Porque um homem mesmo esfomeado jamais será como um cão. Mesmo nos mais tenebrosos campos de concentração, da Alemanha nazi, havia quem a morrer de fome se arrastasse para levar o seu único alimento aos que já nem forças tinham para se bater pelo seu quinhão. É isto que nos destingue dos cães. Um blogue africano comentava assim a notícia, recordando que no Quénia há crianças e cães, como na Nova Zelândia e, tal como neste país, "não se confundem!".
Lembrei-me desta vergonhosa história dos biscoitos para cão ao reler o prefácio de Bono, ao último livro do economista Jeffrey Sachs sobre o escândalo da pobreza. Na obra O fim da pobreza: como consegui-lo na nossa geração (agora publicada em português pela Casa das Letras), o cantor e activista contra a exclusão afirma: "a simples estatística ridiculariza a ideia à qual muitos de nós aderimos sem hesitações: a ideia de igualdade. O que está a acontecer em África faz troça da nossa compaixão, põe em dúvida as nossas preocupações e coloca em causa o nosso compromisso para com todo aquele conceito. Porque, se formos honestos, não há forma de concluir que esta mortandade em massa dia após dia poderia ser aceite se ocorresse noutro lugar. De certeza que não seria aceite na América do Norte, na Europa ou no Japão. Um continente inteiro a arder? Lá bem no fundo se aceitarmos que as vidas deles _ vidas africanas_ são iguais às nossas, estaríamos todos a fazer mais para apagar o incêndio. É uma verdade incómoda". E quantas são as vítimas diárias deste incêndio de fome e doenças várias que hoje se previnem e tratam facilmente? Quinze mil mortos por dia! Leram bem: quinze mil!
Adiante, Sachs, lembra como os estudos realizados por ele em vários países provam que seria possível arrancar um sexto da humanidade, ou seja perto de mil milhões dos actuais excluídos, à "armadilha" que os faz permanecer num estádio sub-humano. Se quiséssemos os nossos netos já poderiam ver toda a humanidade "pelo menos no primeiro degrau da escada do desenvolvimento".
Como? Bastava abdicar do nosso proteccionismo, reforçar eficazmente a ajuda Ocidental e acabar com uma série de falsos mitos . A começar na tese do desperdício de uma ajuda que a maior parte das vezes nunca passou de propaganda. E a acabar na cruel falácia de que de nada serviria salvar crianças da morte para acabarem a engrossar uma perigosa sobrepopulação de esfomeados.
Trinta mil milhões de dólares por ano bastavam para salvar África! Isso é, menos de 5 por cento do rendimento anual dos americanos com ganhos anuais superiores a 200 mil dólares. A solução para acabar com a pobreza existe. E nós somos, como lembra Bono, "a primeira geração que pode desatar o emaranhado do mau comércio, das más dívidas e da má sorte". Em alternativa, podemos optar por ser a geração criminosa que sabendo tudo isso, e podendo fazê-lo, não o fez.
E onde encontrou Sachs exemplos encorajadores? Entre outros na Bolívia, na Polónia, na Rússia, na China na Índia e no Quénia. O tal país que sabe recusar biscoitos para cão suficientes para alimentar 160 crianças durante dois meses. Para preservar a sua dignidade de seres humanos e mesmo correndo o risco de as ver morrer.
Sachs recorda "ainda que os manuais de introdução à economia preguem o individualismo e os mercados descentralizados, a nossa segurança e prosperidade dependem, pelo menos na mesma medida de decisões colectivas para combater as doenças, promover uma boa ciência e uma educação alargada, fornecer as infra-estruturas fundamentais e actuar em uníssono para ajudar os mais pobres dos pobres. Quando as pré-condições das infra-estruturas básicas (estradas, electricidade e portos) e o capital humano (saúde e educação) estão garantidos, os mercados são poderosos motores de desenvolvimento. Sem estas pré-condições, os mercados podem cruelmente passar ao lado de grandes áreas do mundo, deixando-as pobres e em permanente sofrimento".
Aos cristãos Bento XVI na sua primeira encíclica lança um desafio premente: "A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, empenhar-se a favor da justiça, trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem". E abanando os crentes o Papa alerta: "Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente de estratégias e programas de partido".
Não se trata de partilhar os nossos biscoitos para cão, nem sequer as nossas bolachas trata-se de reconhecer que, em rigor, parte dos bens que estão na nossa dispensa não são nossos. São por direito próprio dos mais pobres. E nós, por justiça, devemos devolvê-las aos seus legítimos proprietários...
Não se trata de ver a caridade como uma espécie de novo filão proselitista. Quem assim acusa Bento XVI não pode ter lido o texto até ao fim. Aí se faz notar com clareza que "o amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins". "Quem realiza a caridade (mesmo que o faça) em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja". "O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (...) e torna-se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar". Um texto a consumir em versão integral por todos os homens de boa vontade! Jornalista

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