Público - 19 Fev 06
A sofística do ministro da Saúde
Palcos de discórdia Mário Mesquita
O ministro Correia de Campos lançou uma nova tempestade mediática, ao
surpreender a opinião pública com a morte anunciada do Serviço Nacional de Saúde
(SNS). Esta declaração do ministro veio confirmar uma prática de comunicação
original, que vai desde recomendações aos médicos para "lavarem as mãos" até ao
anúncio de encerramento de diversos hospitais públicos. Após atear o fogo,
Correia de Campos enverga prontamente a farda de bombeiro, com vista a controlar
os danos produzidos, explicando que, afinal, os hospitais só encerrarão quando
novas unidades hospitalares forem construídas ou que o SNS terá ainda a sua
última oportunidade antes de lhe ministrarem a extrema-unção.
É um estilo muito próprio. Não é lícito, a partir dele, passar ao ministro,
reputado especialista em saúde pública, atestados de incompetência profissional,
mas, para ser membro do Governo exige-se também alguma sabedoria política que,
entre outros os requisitos, pressupõe a visão estratégica da comunicação. Ora,
ainda está por esclarecer se estas sucessivas crises mediáticas desencadeadas
por Correia de Campos correspondem a estratégias friamente calculadas com vista
a produzir determinados efeitos ou se, pelo contrário, estaremos apenas em face
do temperamento arrebatado ou do "ego" mal controlado da pessoa em questão.
O espectáculo do SNS, convenhamos, não foi brilhante, se observado do ponto de
vista do cidadão comum, suficientemente causticado com medidas restritivas que,
na linguagem neo-liberal em voga, se designam por "reformas". A operação
desenrolou-se, como vai sendo hábito, em duas fases. Num primeiro tempo, o
ministro disse, num seminário sobre gestão hospitalar, que, se os actuais
esforços para controlar a despesa pública no sector não resultarem, terá de
optar pela ruptura com o modelo do SNS. O utente passará a pagar mais, "com
graus de participação (na despesa) de 100, 75 e 50 por cento", consoante o grupo
de rendimentops em que se situar. Num segundo tempo, após os protestos surgidos
de diversos quadrantes, sustentou que está apenas em causa "apenas uma hipótese"
e que as declarações foram "descontextualizadas".
O modelo de comunicação
Este modo de comunicação política, em dois tempos, corresponde provavelmente a
uma forma original de praticar o tradicional "balão de ensaio", sem necessidade
de recorrer às "fugas de informação". Ao enunciar as suas intenções "sob
condição" ("se não for possível conter a despesa..."), ficando por determinar
quem é o "sujeito" responsável por tal contenção, o ministro produz em
simultâneo dois efeitos: mede a temperatura da opinião pública e prepara-o para
soluções drásticas, remetidas para futuro incerto.
Em entrevista a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO (18 de Fevereiro),
Correia de Campos afirma ter pretendido dirigir-se, com uma mensagem forte, aos
gestores da saúde. Com recurso à metáfora castrense (acaso será apreciada no
meio médico e hospitalar?), esclareceu, com meridiana clareza: "(...) O meu
papel é chamar as tropas a capítulo. Tenho de dizer àqueles generais e coronéis
que está na mão deles garantir que o actual sistema se pode manter ou permitir
que tenha de ser radicalmente limitado".
Julgará o ministro que é possível dirigir-se à hierarquia das "tropas", numa
sessão pública, sem que o resto do país oiça e comente? Ignorará que, na actual
democracia de opinião, não é viável dirigir-se a um segmento do público sem que
o resto da população também oiça? Tamanha ingenuidade está fora de causa. Aliás,
os protestos não tardaram a surgir, desde logo pela voz de António Arnault que,
com a apoio técnico do médico Mário Mendes, apadrinhou, no final dos anos 70, a
criação do SNS. À esquerda e á direita, a oposição manifestou-se. O
primeiro-ministro ficou preocupado. O ministro Vitalino Canas interveio, numa
ingrata missão de "re-contextualização". Correia de Campos recuou para uma
trincheira mais protegida.
Desconstruir a retórica
O discurso ministerial (entrevista ao PÚBLICO) merece análise ponderada.
Primeiro enunciado: "Eu não desisti: o meu papel tem sido o de tentar mostrar
que, com boa gestão, o actual modelo financeiro é viável através do corte da
gordura, do corte do desperdício." Segundo enunciado: "Quando o país se
convencer de que isso não basta, então será necessário encontrar outro mecanismo
de financiamento". O enunciado número dois é, obviamente, contraditório com o
enunciado número um. Qualquer cidadão de mediana capacidade interpretativa deduz
que o ministro já sabe, mas ainda não quer ou não pode assumi-lo por inteiro,
que a gestão rigorosa não bastará para viabilizar o sistema. Limita-se a
preparar a opinião para os passos seguintes. Por isso o sujeito da segunda frase
"é o país". Se Correia de Campos diz "quando o país se convencer", é porque ele
próprio já está convencido. Os esforços de contenção em curso destinam-se apenas
a tirar a "prova real": Por isso são apresentados como "a última oportunidade"
do SNS.
Esta forma de anunciar, sob a forma de hipótese, medidas futuras que, por sinal,
não constam do programa de Governo, não me parece um bom método de comunicação
política. Em tempo de restrições e apelo aos sacrifícios, a curto prazo, não
parece avisado adensar as nuvens negras inscritas no horizonte. Mas talvez o
ministro queira apenas prevenir o futuro. Para já, suscitou protestos de todos
os horizontes políticos, mesmo se, à direita, sob o manto diáfano das críticas
aparentes, se esconda a satisfação de ver assumidas pelo governo de
centro-esquerda o ónus de decisões económicas de pendor "liberal" (António
Arnault dixit) que a direita teria dificuldade em assumir em nome próprio. Até o
CDS, embora afirmando alguma simpatia pelas propostas, fez questão de
considerá-las inconstitucionais. O antigo ministro Luís Filipe Pereira, do PSD,
deve sentir-se reconfortado, ao lembrar-se do coro de protestos surgido, quando
integrava o Governo de Santana Lopes, por ter anunciado a criação de "taxas
moderadoras" diferenciadas consoante o rendimento.
O SNS é uma questão essencial da sociedade portuguesa. Se o modelo de Estado
defendido pelos partidos do "centrão" - em especial, neste caso, pelo PS -envolve
o financiamento pelos utentes dos serviços de saúde, com a participação do
Estado, graduada consoante os rendimentos de cada cidadão, será bom que a
questão seja debatida com clareza e submetida ao sufrágio dos cidadãos. A
democrata-cristã Angela Merkel ganhou eleições na Alemanha, apesar de ter
enunciado claramente que tencionava aumentar impostos e restringir regalias
sociais. Não obteve a maioria absoluta, mas criou uma situação que lhe permite
governar, em coligação, com plena legitimidade. "Vender gato por lebre" aos
eleitores, através de elaborada sofística, é que não é legítimo, por muito pouco
que valha a força dos cidadãos, quando comparada com o poder das grandes
seguradoras e de outros interesses privados que, por detrás da cortina,
espreitam com gula este festival de equívocos sobre o Serviço Nacional de Saúde.
Professor universitário
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