Público -
13
Fev 06
"To be, or not to be..."
Mário Pinto
1.Esta "questão global" desencadeada dramaticamente pelos cartoons dinamarqueses
desafia-nos a duas tarefas urgentes.
Uma, e prioritária, a de superar a conflitualidade que alguns instigam, mas
aparenta estar latente em sentimentos populares de muçulmanos, inclusive
habitando em países europeus. É um fenómeno da maior importância e melindre para
a paz e a concórdia no mundo, que pode ficar fora de controlo das nossas
capacidades políticas. Os cidadãos e governantes ocidentais que lidarem com
leviandade com este difícil fenómeno, brincam com um fogo que pode incendiar o
mundo e espalhar a guerra, o terrorismo e a desgraça neste nosso tão esperançoso
terceiro milénio dos avanços científicos e civilizacionais. Quer entre nações,
quer entre comunidades dentro das nossas próprias nações europeias.
Às vezes, parece que queremos resolver os problemas internacionais e de
civilização, sim, mas absolutamente à nossa maneira e segundo a nossa opinião.
Se é assim, então poderá ser mais uma forma do velho instinto imperialista do
ocidente, que passou por diversas fases e manifestações: paternalista, mas
predadora e esclavagista; depois exploradora e mercantilista; depois dominadora
e comercialista; depois geopolítica; agora talvez ideológica iluminista e
laicista.
A outra tarefa é entendermo-nos melhor sobre os limites das nossas liberdades,
designadamente das liberdades de imprensa.
2. Defendo que se deve separar o tratamento prudencial das duas questões, embora
elas tenham surgido na actualidade uma por causa da outra, e vice-versa. A
abordagem conjunta e interdependente pode levar a um prejuízo (uma das partes
cede, mas cede mal, por exemplo na ideia das liberdades); ou a um beco sem saída
(uma ou ambas as partes ficam sem possibilidade de recuo político, dados os
movimentos sociais desencadeados). E isso pode suceder se ambas as partes da
"guerra dos cartoons" se barricarem no carácter absoluto do seu direito. Uns
dirão (e dizem): o direito dos cartoonistas de caricaturar a religião é
absoluto. Outros dirão (e dizem): o direito ao respeito pelas crenças religiosas
é absoluto e, em si ou nos seus símbolos, não tolera ser ridicularizado em
cartoons. Assim, será a guerra, e ganhará o vencedor da guerra, não o que tiver
razão. Procedamos com sabedoria, que é um saber que procede não apenas da razão
(sede da chamada racionalidade que tende para o absoluto), mas também do coração
(sede da amizade que tende para o mistério da relação afectiva com o outro).
3. Uma certa nossa mentalidade pós modernista europeia pretende constantemente
romper consensos que foram, e ainda são, das nossas mais íntimas e sérias
convicções de sabedoria. E o pior é que não se percebem as "razões razoáveis"
dessa fúria, que não seja por aquela violência infantil que simplesmente gosta
de partir tudo, ou pelo velhíssimo mau instinto de poder sem limites sobre tudo,
inclusive sobre os semelhantes.
Criei-me ouvindo, da boca de toda a gente, à minha volta, sem contestação, a
sentença da sabedoria popular que, na sua linguagem de incomparável força e
beleza, diz assim: "há coisas com que não se brinca".
Toda a gente estava de acordo e a experiência da vida confirmava esse
ensinamento para se viver em paz e concórdia. Mas, que coisas eram essas? A
sabedoria ia mais longe, e dava talvez o principal exemplo: «não se brinca com
os sentimentos de ninguém». Espantoso! É possível dizer mais além e melhor? Não
o creio. E que sentencia o pós modernismo sobre este absolutismo do relativo ou
este relativismo do absoluto contido naquela sentença popular?
Foi assim que fui educado e me eduquei. Sem hesitações e sem arrependimentos até
agora. Está aqui uma pré-compreensão da "substância" das relações humanas, que
dá toda a importância ao outro. O racionalismo pós modernista não segue por
aqui: dá toda a importância apenas ao que cada um vale para si - sendo que
postula que o outro faça o mesmo. O resultado é um choque de direitos absolutos,
ou um oceano onde vagueiam ilhas de soberania.
4. Vêm agora ilustres colunistas e cartoonistas dizer que se pode brincar com
tudo e todos. A tese é de tal modo absurda que me dispenso de a criticar.
Outros, porém, fazem uma distinção inteligente, embora discutível, como
procurarei mostrar. Dizem esses: sim, há limitações às liberdades de expressão e
de imprensa; mas as restrições que se aplicam à liberdade de expressão só se
aplicam em benefício dos indivíduos, sua dignidade, liberdade, privacidade e
bom-nome. Não se aplicam em favor de religiões, comunidades, crenças e deuses.
Muito claramente (e num país como o nosso, onde não se blasfema), defendem
expressamente a liberdade de "blasfémia" (alguns chegam mesmo a dizer um
direito...).
5. Não é possível concordar com esta argumentação. A forte dúvida é que as
pessoas não são separáveis do que efectiva e humanamente integra a sua
personalidade, a sua identidade humana, as suas razões de viver, como por
exemplo a sua liberdade, a sua Pátria, os seus bens mais queridos, a sua
família, o seu Deus, a sua comunidade, a sua dignidade. Quem é que pode valorar
esses bens ou afectos como extrínsecos, externos, insignificantes, se essas
pessoas estão dispostas a dar a vida por eles? Como o jovem que morre pela sua
Pátria e pela sua bandeira; o cidadão pela liberdade; a mãe pelo seu filho e o
filho pela sua mãe; o mártir crente pelo seu Deus.
Perante isto, podemos responder que não é lícito insultar os indivíduos, mas é
lícito insultar ou ridicularizar a sua comunidade, a sua família, a sua crença?
Podemos dizer que não é lícito insultar um crente, pela sua fé, mas é lícito
insultar o seu Deus, blasfemando? Eis a questão. E eis a minha discordância.
Evidentemente, tem de admitir-se que as ofensas à religião ou a Deus ofendem as
pessoas crentes, porque não há crença fora dos crentes - restará saber, em cada
caso, como neste dos cartoons dinamarqueses, se para aquém ou para além da linha
de limite do exercício da liberdade de "brincar". Porque há brincadeira que não
ofende; sempre aquém do efeito de "ridicularizar".
E o que decide? É a nossa racionalidade conceptual, ou o nosso interesse? Não.
Será o discernimento tópico sobre justas condições de paz e de concórdia entre
pessoas e comunidades. Como se chega lá? Talvez... pelo bom senso - Saramago
dixit. E o bom senso pede a dúvida: "to be, or not to be". E exclui o decreto do
absolutismo: "to be or not to be". Professor Universitário
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