Público - 10 Fev 06

O défice
Pedro Strech

O que faz falta, não existe ou não é suficiente para que tenhamos mais gente a crescer bem emocionalmente, ou a ter menos dificuldades como
as de comportamento agressivo,
de aprendizagem, de consumo
de álcool ou drogas?

Quando pensamos nesta palavra, é fácil associá-la apenas a conceitos económicos, como ao do dinheiro que falta numa conta ou à diferença entre despesa e receita, quando aquela é superior a esta. No Portugal de hoje, o défice mobiliza debates, organiza prioridades dos governos, elege governantes tal e qual os deita abaixo, move opiniões, gera estudos, faz correr tinta e gastar papel. Mas se, ainda que por breves instantes, nos debruçarmos sobre o que se passa no mundo da infância e da adolescência, de que défice falamos então? O que é que faz realmente falta, não existe ou não é ainda suficiente para que tenhamos mais gente nova a crescer bem emocionalmente, ou a ter menos dificuldades importantes como as de aprendizagem, de comportamento agressivo, de consumo de álcool ou drogas, só para citar algumas que são das mais comuns? Ou, dito de outra maneira, se desejarmos cumprir a ideia de pôr as crianças primeiro, sobre que défices nos deveremos debruçar? Entre outros, talvez nestes:
- Défice de afecto: é extremamente simples perceber que as crianças não se organizam emocionalmente sem que, desde o mais inicial instante de vida, cresçam num clima de bom envolvimento afectivo, em que possam ser investidas, amadas de uma forma incondicional. Um bebé não sobrevive sozinho sem que exista quem dele cuide fisicamente, assim como psiquicamente. Depois, à medida que se vai crescendo, as crianças e os adolescentes continuam a necessitar de um bom apport narcísico, para que se sinta minimamente bem com elas próprias, estáveis no seu amor-próprio, afinal a base mais elementar para que alguém se possa envolver no complexo mundo das relações e, entre outras coisas, aprender, pensar, conhecer, imaginar ou sonhar. Mas, paradoxalmente, a realidade em que vivemos demonstra bem que, independentemente das condições sociais das suas respectivas famílias de origem, nem todos os mais novos conseguem ser alvo de um amor dos seus pais ou mesmo de outros adultos que os rodeiam; ou ainda, de um amor continuado, não intermitente, não interrompido e nunca mais recomeçado. Basta pensar no enorme número daqueles que estão institucionalizados, nos que são batidos, negligenciados, abusados, nos que nem nunca conheceram os seus pais ou que, em determinado ponto, foram por eles inexplicavelmente abandonados. A este défice, correspondem depois outros défices mais globais, como os de auto-estima, segurança, confiança, bem como os afectivos e até mesmo cognitivos e intelectuais.
- Défice de contenção: isto é, de regras e de limites que contenham e organizem afectivamente as crianças, ajudando-as a respeitarem-se a si próprias e aos outros, não se pondo desnecessariamente em risco ou pondo os outros em risco, delimitando diferenças de papéis e de estatutos normais e saudavelmente estruturantes. Cada vez mais, há casos de rapazes e raparigas que crescem sem qualquer tipo de contenção, mantendo um funcionamento omnipotente de "quero, posso e mando", que nada mais conhece que o impulso do momento, a incapacidade de esperar, desejar, elaborar a ausência e até mesmo a frustração. É neste défice que assentam alguns dos défices de atenção, de comportamento, de respeito e de capacidade empática pelo outro, tudo graves problemas de saúde pública neste início de século.
- Défice de comunicação: em que a capacidade de escutar, compreender e responder adequadamente às necessidades emocionais da gente nova (por vezes, mesmo às mais básicas...) é muito diminuta ou mesmo ausente. A literacia emocional, quer dizer, a possibilidade de se ler mais facilmente a expressão psíquica dos mais novos é ainda uma miragem na relação de muitos adultos com crianças e adolescentes e, dessa má comunicação, nascem muitos silêncios, mal-entendidos ou esquecimentos, que levam a padrões de relação marcados pelo condicionamento comportamental, autoritarismo ou pela retaliação pura e simples. Veja-se o que se passa em famílias de padrões muito rígidos, em algumas escolas ou instituições de suposto tratamento de falhas psicossociais de rapazes e raparigas. Pense-se ainda em todos aqueles que constantemente emitem apelos, expressão tão evidente do seu mal-estar interior, sem que do exterior venham um breve sinal de compreensão. É este défice que leva igualmente a outras falhas, como as de algumas perturbações psíquicas, que, hoje em dia, representam um enorme factor de morbilidade da população em geral: existir, falar, serem ouvidas, eis as aspirações básicas de muitas pessoas esquecidas no todo ou em parte das suas vidas.
- Défice de tempo: num tempo consumido na voragem do instante, em que as vivências se pulverizam na corrida para o emprego diário dos pais e da escola dos filhos, e em que sobra tão pouco para realmente estar, crescer bem torna-se mais difícil. E crescer é como uma linha que representa a soma de todos os pontos por onde passamos ao longo da vida; nela, cada momento conta, não é só cada ano, ou cada mês, pois quanto mais novo se é mais importa cada dia, e nele, as horas, os minutos e, no extremo, todo um enredo que se inscreve em cada momento, mesmo os mais pequenos ou insignificantes, pois é bem verdade que são muitas vezes esses fragmentos de nada, onde tanta coisa se passa, os mais fortes agentes de mudança, aqueles pormenores que bloqueiam, avariam ou distorcem uma engrenagem, ou aquelas particularidades, ao fazerem transbordar o copo marcam a diferença, passando páginas ou encerrando capítulos fundamentais. Este défice produz marca muito profundas, como o défice do conhecimento de nós próprios e, assim mesmo, dos outros.
- Défice de justiça: impossível esquecer num momento em que a palavra da criança, em todos os seus significados, continua a ser muito repetidamente desvalorizada, esquecida, quando não mesmo ignorada, desprezada ou humilhada. Depois, só quase sempre muito depois, vêm as queixas, o reconhecimento de falhas evitáveis se a justiça que sobre os mais frágeis se exerce não fosse mais do que a triste constatação de que, afinal, continuamos a não nascer todos iguais em direitos. O défice de uma justiça protectora dos mais novos leva a um grave incumprimento da carta das Nações Unidas sobre os direitos das crianças, que todos sabem que existe, mas está longe de se sentir interiorizada.
- Défice de cultura: de uma cultura em que as crianças e os adolescentes estejam como uma prioridade. Por exemplo, ainda recentemente o Governo irlandês lançou uma série de medidas que reforçam políticas de investimento nos mais novos, sob o título Putting the Children First. E que há por cá?
- Défice de esperança: a derradeira esperança numa verdadeira mudança, numa revolução de mentalidades e de postura que tarda em chegar. Ou, no limite, como quem a perde, seremos todos obrigados a rever o mais profundo sentido das nossas vidas. Pedopsiquiatra

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