Público -
8 Fev 06
Dinheiro sujo
Joaquim Fidalgo Crer para Ver
Não há coisa melhor ou mais bonita do que a solidariedade. E não há coisa pior
ou mais feia do que o aproveitamento dessa solidariedade para fins opostos a
ela. Não há coisa mais feia, mais miserável do que tentar ganhar dinheiro à
custa e em cima das desgraças alheias, das tragédias, da pobreza, da fome, da
doença. E, no entanto, há muita gente que ganha muito dinheiro desviando, em
proveito próprio, milhões e milhões que vieram dos contributos generosos de
pessoas ou instituições para programas de ajuda humanitária e que em grande
parte nunca chegarão ao seu destino. Até dá uma coisa no estômago quando se sabe
disso. Mas há.
Não sei se ando mais sensível a este respeito, depois de ter visto esse filme
espantoso que é O Fiel Jardineiro. Quem viu (e espero que tenham sido muitos...)
sabe do que falo. Quem não viu (e espero que ainda vão a tempo de ver...) saiba
que por ali passa uma história de multinacionais farmacêuticas que, à boleia de
programas muito solidários de vacinação, aproveitam para fazer testes de novos
medicamentos em cobaias humanas, pobres e inocentes, com isso poupando milhões
em testes de laboratório e conseguindo, depois, contratos milionários
facilitados por múltiplas redes de corrupção. Fosse ou não fosse pelo filme, o
certo é que tenho visto sucederem-se as notícias sobre estes crimes baixos. E
pela aragem se imagina o que vai na carruagem: os crimes descobertos (desvios,
roubos, subornos) são com certeza uma ínfima parte da sujeira que por esses
circuitos abunda e que, infelizmente, nos abalam a admiração por gentes e
organizações que julgávamos solidárias - e nada mais que solidárias.
Andam pela ONU umas investigações alargadas, pois detectaram-se fraudes de
valores elevadíssimos em algumas das suas missões de paz, coisas como gastar uns
40 milhões de dólares para comprar uns helicópteros que, no mercado normal,
qualquer um poderia comprar por... 10 milhões! Noutro dia, soube-se também que,
de um total de 30 mil milhões de dólares angariados para ajuda à reconstrução do
Iraque, cerca de um terço (ou seja, 10 mil milhões de dólares!...) ficou pelo
caminho, desviado em proveitos pessoais diversos. Fazem-se fortunas fabulosas à
custa deste dinheiro dado pelas pessoas para ajudar outras pessoas. E não é só
por fraude, é também pelos custos do "negócio" em que se transformou muito deste
auxílio humanitário: há tempos, numa bela entrevista concedida a Ana Sousa Dias,
José Mattoso falava da sua tristeza quando soubera que o organismo das Nações
Unidas instalado em Timor-Leste para coordenar as ajudas ao país gastava 90 por
cento do orçamento em despesas da sua própria manutenção e funcionamento,
sobrando uns míseros 10 por cento para a ajuda efectiva ao povo! Neste caso se
calhar nem é roubo ou fraude, mas a verdade é que também nos sentimos
defraudados... Já para não falar de uma organização brasileira dedicada a
combater a fome no país e que, no ano passado, gastou (contou a revista Dia D)
mais dinheiro em fotocópias do que em alimentos para matar a fome dos
necessitados! Jornalista
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