Público - 3 Fev 06

O limite do bom senso

José Manuel Fernandes

Para que nunca haja limites à liberdade de expressão, esta deve ser utilizada de forma responsável

A melhor forma de regular a liberdade de expressão é... não a regular. É por isso que a sua melhor formulação continua a ser a da primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, onde se interdita que o Congresso faça qualquer lei que, de alguma forma, limite a liberdade de expressão (assim como a de religião). Foi por invocar essa emenda que o Supremo Tribunal não considerou ilegal a publicação de revistas pornográficas, por exemplo, no famoso caso que envolveu Larry Flint e deu um filme. Mas será que, ao permitir a existência da indústria pornográfica, a lei americana torna imediatamente legítimo e correcto, por exemplo, que um diário como o The New York Times editasse na sua primeira página uma cena de sexo ao vivo? Legal, era. Nenhum juiz mandaria apreender aquela edição do jornal. Mas tal decisão editorial feriria uma outra regra não escrita que deve ser seguida pela imprensa responsável: a do bom senso.
Todos os dias, nos jornais ou nas televisões, os jornalistas têm de fazer escolhas. Sabem que têm o dever social de observar de forma tão crítica como responsável a realidade que retratam ou sobre a qual reflectem. E também sabem que devem ter em consideração os valores e as sensibilidades dos seus leitores. Por isso decidir que um filme com imagens muito violentas só deve ser exibido a horas em que a probabilidade de ser visto por crianças é pequena é um acto responsável, não uma decisão que decorra de qualquer condenável "autocensura". Da mesma forma o tipo de graças que são admissíveis numa publicação de grande difusão como é o Inimigo Público obedece à preocupação de fazer humor sem ofender de forma gratuita.
Naturalmente que quando se lida com convicções religiosas a linha do que é ou não publicável se torna muito mais fina e difícil de determinar. Exige mais sensibilidade, requer maior capacidade para resistir à tentação fácil do sensacionalismo voyeurista e à curiosidade alarve do público. Da mesma forma que o que se diz num serão entre amigos não se repete numa sala de aula perante os alunos, ou tal como sabemos que a liberdade criativa de um artista plástico - mesmo quando força a provocação - não tem o mesmo impacto se ficar confinada à sala de exposições ou se for reproduzida em cartazes espalhados pelas paredes de uma cidade, temos obrigação de ser cuidadosos quando lidamos com sentimentos e convicções de outros, os quais são tão legítimos como os nossos.
Neste quadro, e face ao debate em torno dos cartoons encomendados por um jornal dinamarquês, o PÚBLICO reproduz alguns deles, para que os leitores possam tomar conhecimento do que se está a discutir, mas não entende que tenha qualquer obrigação de repetir a "provocação" por "solidariedade". Sente, isso sim, que da mesma forma que não se podem aceitar quaisquer limites à liberdade de expressão, se deve cultivar a responsabilidade na utilização dessa liberdade.
Alguns exageros podem ser contraproducentes e levar a consequências exactamente contrárias às que se pretendiam. Por isso é que a vida numa sociedade livre e aberta implica que interiorizemos limites. Não limites impostos pelo Estado, mas pela cultura, pela educação, pela civilidade. São eles que nos obrigam a agir não apenas de acordo com leis que são sempre imperfeitas e intrusivas, mas seguindo os mesmos critérios de bom senso e equilíbrio sem os quais não poderíamos nunca conciliar o nosso direito a termos convicções fortes com o direito dos outros a que não lhas imponhamos. É isso que dá corpo a uma tolerância que queremos substantiva e não baseada no relativismo e na ausência de valores.

WB00789_.gif (161 bytes)