Público - 15 Fev 05

O Voto Católico: Discernimento Político e Objecções de Consciência
Por MÁRIO PINTO

1. Numerosas questões políticas não levantam problemas (objecções) de consciência, embora impliquem sempre discernimento, porque se reduzem a escolhas entre vários meios ou caminhos, todos eles igualmente lícitos, para resolver um dado problema, ou atingir um dado fim lícito ou mesmo bom. A este respeito, a Igreja diz aos católicos o seguinte: "No plano da militância política concreta, há que ter presente que o carácter contingente de algumas escolhas em matéria social, o facto de muitas vezes serem moralmente possíveis diversas estratégias para realizar ou garantir um mesmo valor substancial de fundo, a possibilidade de interpretar de maneira diferente alguns princípios basilares da teoria política, bem como a complexidade técnica de grande parte dos problemas políticos explicam o facto de geralmente poder dar-se uma pluralidade de partidos, dentro dos quais os católicos podem escolher a sua militância para exercer - sobretudo através da representação parlamentar - o seu direito-dever na construção da vida civil do seu país" (Concílio Vaticano II, "Gaudium et Spes", 76, apud "Nota Doutrinal da Congregação da Doutrina da Fé" sobre a participação dos católicos na política, aprovada e mandada publicar pelo Papa João Paulo II).

2. "Tal constatação óbvia (continua a citada "Nota") não pode todavia confundir-se com um indistinto pluralismo na escolha dos princípios morais e dos valores substanciais..." "A legítima pluralidade de opções temporais mantém íntegra a matriz donde promana o empenho dos católicos na política, e esta matriz liga-se directamente à doutrina moral e social cristã." Quer dizer, haverá necessariamente limites às escolhas políticas dos católicos. Neste sentido, há escolhas políticas que colocam inequivocamente problemas de consciência. Daqui decorre, para todos os que livremente aderem à confissão católica, uma obrigação comum de formação da sua consciência segundo a "doutrina moral e social cristã".

3. Precisamente, a Igreja dá indicações mais específicas sobre esses limites impostos pela matriz da doutrina moral e social cristã, estabelecendo assim limites à liberdade de discernimento enquanto concorde com a doutrina da fé. A já referida Nota Doutrinal esclarece, a propósito, nestes termos: "Neste contexto, há que acrescentar que a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer com o seu voto a actuação de um programa político, ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos. (...) Quando a acção política se confronta com princípios morais que não admitem abdicações, excepções ou compromissos de qualquer espécie (...), perante as exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, os crentes têm efectivamente de saber que está em jogo a essência da ordem moral, que diz respeito ao bem integral da pessoa. É o caso das leis civis em matéria de aborto e de eutanásia (...), que devem tutelar o direito à vida, desde a sua concepção até ao seu termo natural. Do mesmo modo há que afirmar o dever de respeitar e proteger os direitos do embrião humano. Analogamente, devem ser salvaguardadas a tutela e promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente (...); não se pode, de maneira nenhuma, pôr juridicamente no mesmo plano da família outras formas de convivência, nem estas podem receber como tais um reconhecimento legal. Igualmente, a garantia da liberdade de educação que os pais têm em relação aos próprios filhos. No mesmo plano, devem incluir-se a tutela social dos menores e a libertação das vítimas das modernas formas de escravidão, como por exemplo a droga e a prostituição. Não podem ficar de fora desta deste elenco o direito à liberdade religiosa e o progresso para uma economia que esteja ao serviço da pessoa e do bem comum, no respeito da justiça social, do princípio da solidariedade humana [opção preferencial pelos pobres e defesa dos excluídos] e do da subsidiariedade, segundo o qual 'os direitos das pessoas, das famílias e dos grupos, bem como o seu exercício, têm de ser reconhecidos' (GS, 75). Finalmente, tem de incluir-se nesta exemplificação o tema da paz (...), que é sempre 'fruto da justiça e efeito da caridade'."

4. Ora, estão hoje na ordem do dia opções políticas que defendem a constituição de pseudodireitos contra a vida humana (como o direito de abortar, as manipulações do embrião e a eutanásia). A estas opções, os católicos não podem dar o seu voto, sob pena de se excluírem da comunhão na fé e na doutrina da Igreja, definidas pela tradição, pelo Concílio e pelo ensino constante da autoridade. Nem se diga que é uma questão religiosa dos católicos, porque se trata de uma questão de direito natural - e ainda que fosse uma objecção religiosa, ela era da mesma maneira válida como objecção moral irrecusável para o seu voto. Corremos o risco de que venha um dia em que a humanidade lamentará a barbárie materialista de uma deriva contra a vida; mas os "homens e mulheres espirituais", na expressão de S. Paulo, não poderão ficar réus dessa barbárie mortal.

ADENDA ELEITORAL. Parece já recorrente que, nestas eleições, os socialistas se considerem chamados a salvar o estado calamitoso da nossa economia e finanças públicas, do Estado-providência e do peso do Estado, vindo uma vez mais em socorro da situação nacional, como salvadores, depois de terem contribuído decisivamente para, antes, a desequilibrar por colectivismo social e ideologismo estatista. Foi o que aconteceu com Mário Soares, em 1975, na Alameda, depois com o bloco central, e é o que agora, depois do socialismo "guterrista", pela terceira vez nos é anunciado. Em trinta anos, três vezes. É o ciclo da política portuguesa? Desta vez, o futuro da competição na Europa, com a entrada dos países de Leste, e o crescendo da globalização, com destaque para os impactes da China e da Índia no comércio mundial, já não nos dão mais folga cíclica, e temos que fazer uma regeneração auto-sustentável. Mas uma tal regeneração não será possível sem uma nova revisão constitucional, a fim de se acabar com os bloqueios da Constituição. Porque está aí a matriz "directiva" de um regime de Estado social de monopólios públicos e de mentalidade administrativista-centralista-burocrática que tem de mudar, para permitir a (re)construção do nosso capital humano, social e cultural. Isto é, a revitalização da nossa sociedade civil. A questão não é só de gestão política; é também de paradigma. O nosso ainda socialismo constitucional de opção por monopólios públicos tem, ao menos, de ser revisto para socialismo da terceira via. De outro modo, este projecto de regeneração não será sustentável, e voltaremos de novo para trás depois de uma eventual melhoria conjuntural. Terceira via! Nesta campanha eleitoral, já se ouviu falar?...

Professor universitário

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