Agência Ecclesia - 19 Fev 04

A Quaresma e a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana
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A Igreja de Deus, guiada pelo Espírito, sua ‘memória viva’, revive, na fé, o mistério dos 40 dias (Quadragésima) de oração e jejum de Jesus “levado pelo Espírito ao deserto” (Lc 4,1) e todo o mistério, de prova e de consagração à vontade do Pai, que se manifesta na vida pública do Senhor, desde o baptismo de penitência a que se sujeitou, no rio Jordão, até ao ‘baptismo’ da morte, a que livremente se entregou por nós em sacrifício, salvando-nos pelo seu Mistério Pascal.

A Quaresma orienta para o sacrifício da cruz e para o triunfo pascal, de modo que não há jejum, oração e esmola que não provenham dum profundo desejo de conversão e para esta se orientem. A Páscoa pressupõe a Quaresma, que começa com o rito da imposição das cinzas e vai até ao Tríduo Pascal. A Quaresma é o tempo propício para a conversão, para a reflexão e diálogo com Deus, na oração e para a partilha com os irmãos necessitados.
O Papa, nesta Quaresma, convida-nos a meditar a palavra de Jesus “Aquele que acolher em meu nome uma criança como esta, acolhe-me a Mim” (Mt 18,5), a qual é evidentemente, parte da resposta à pergunta dos discípulos: “Quem é o maior no Reino do Céu?” (Mt.18,1).
Jesus: “chamou uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: Em verdade vos digo: se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças de modo nenhum podeis entrar no Reino do Céu. Aquele que se tornar pequeno como esta criança, será o maior no Reino do Céu. Aquele que acolher, em meu nome, uma criança como esta, acolhe-me a Mim” (Mt 18,2-5 ).
Jesus fala duma dupla atitude: ‘tornar-se’ pequenino e ‘acolher’ os pequeninos. A primeira condiciona a segunda: só quem se fizer ‘criança’ é que será capaz de acolher com amor os mais pequeninos, que são sempre os mais indefesos.

1. AMOR E IDENTIFICAÇÃO DE JESUS COM OS PEQUENINOS
Jesus manifesta predilecção, pelos humildes e pelos pequeninos e identifica-se, com eles: “sempre que fizestes (ou deixastes de fazer) isto a um destes meus irmãos mais pequeninos a mim mesmo o fizestes (ou deixastes de fazer)” (Mt 25, 40. 45).
O amor de identificação de Jesus com os pequeninos constitui o móvel de todo o discurso eclesial (Mt 18,2-35 ): da apóstrofe contra o escândalo, que faz cair os fracos; do abandono do rebanho para salvar a ovelha tresmalhada; e da resolução de litígios pela correcção fraterna. É ele que se expande na oração comunitária onde o Senhor está presente; e é ele que frutifica e orienta para o perdão recíproco.

2. LÓGICA DO MUNDO E ‘CONDESCENDÊNCIA’ DE DEUS
Os discípulos movem-se na lógica da grandeza, da importância e do poder, segundo os critérios do mundo em que vivem e onde, ontem como hoje, o que conta é o poder, o ter, o fazer e a ostentação.
Jesus exorta a modificar a apreciação, o pensar e o agir, de modo a podermos ver e apetecer como sábio, como grande, como verdadeiramente valioso e digno de apreço aquilo ‘que é fraco e desprezível aos olhos do mundo’. Convida a abraçar a sabedoria da Cruz (1Cor.1,17-31) e a lógica amorosa da ‘condescendência’ de Filho de Deus, que ‘se fez carne’ (Jo.1,14), pequenino, pobre, submisso, dependente, ‘em tudo igual a nós excepto no pecado’. Jesus convida a segui-LO e a imitá-LO a Ele que ‘se aniquilou e se fez servo humilde e obediente até à morte’ (Fil 2,5-11 ), servindo e dando a vida em redenção (Mc 10,45 ).
“ Pela sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem” (Gaudium et spes, 22 ). Assim, manifestou o infinito amor de Deus que “amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito” (Jo 3,16) e manifestou também o ‘valor incomparável de cada pessoa humana’, pois: “o Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho” (João Paulo II, Evangelho da vida, n. 2).

3. ‘CULTURA DA MORTE’ E ‘CONJURA CONTRA A VIDA’
“Sem o Criador, a criatura não subsiste (...). Se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece” (G.S.36). Com o eclipse de Deus, a vida dos fracos e indefesos, que mereceria mais cuidados, é desprezada e objecto de pouca preocupação solidária, assistindo, como diz o Papa, a uma ‘conjura contra a vida’, a uma ‘guerra dos poderosos contra os débeis’ (cf. Ex 1,7-22), a um esbanjamento de dinheiro na luta contra a pessoa, justificando crimes contra ela, como o aborto e a eutanásia, ‘em nome dos direitos da liberdade individual, pretendendo não só a sua impunidade e autorização por parte do Estado, para os praticar com inteira liberdade’, mas até que esses crimes sejam pagos pelo dinheiro dos contribuintes.
A Igreja, que está ao serviço da vida humana, considera seu dever, a que não pode de modo nenhum subtrair-se, dar voz a quem a não tem, defendendo os inocentes, os mais fracos, os pequeninos de todas as condições, que são sempre os preferidos de Deus e sempre aqueles com quem Jesus se identifica ( Mt.18,1-5; 25, 40.45 ).

4. SEQUELA DAS IDEOLOGIAS DO SÉCULO XX
Durante o século XX, as ideologias do nazismo e do comunismo cometeram crimes horrorosos, em nome dum programa ‘cientificamente’ organizado, em prol do super homem, da super raça e da perfeita sociedade. Eliminaram velhos e crianças, nascidas e por nascer, gente sem voz, fracos, inocentes e sem defesa, bem como pessoas doutras raças e convicções. Aniquilaram, em nome duma cartilha pseudo-científica, da raça ou da sociedade paradisíaca a promover, os que, então, não pensavam como eles.
Estejamos atentos. Olhemos para o mundo que nos rodeia. Não podemos pensar, nem agir, segundo um ordenamento permissivo e imposto, feito à medida do grupo ou de cada um, por uma sociedade hedonista, cínica e farisaica, sem valores e sem referências, assente numa ‘exasperada e deformada ideia de subjectividade’.
Como diz o Papa, um crime é sempre um crime, quer seja realizado por um tirano quer legitimado pelo consenso popular (Evangelho da Vida, 70 ).
A mentalidade abortista, a esterilização, a escravatura, o comércio de pessoas e órgãos, o mau tratamento das crianças, das mulheres, dos fracos e indefesos, a eutanásia e outras formas de manipulação da pessoa humana, são ainda sequelas dessas estranhas ideologias a que o século XX nos habituou.
Por mais doce que seja a morte dum velho considerado como trapo improdutivo e, por mais eufemista que se apresente a ‘interrupção voluntária da gravidez’, tudo isso é morte e atentado contra a dignidade inviolável e sagrada da pessoa humana.
Temos que continuar a denunciar, com o profeta Isaías, a atitude daqueles que promovem a perversão e aniquilação da consciência moral: “ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo! ” (Is 5,20).
Como argumentava Madre Teresa de Calcutá, a santa que gastou a sua vida ao serviço dos mais pobres, “se uma mãe pode matar um filho seu, que nos impede, a mim e a ti, de nos matarmos um ao outro”?

Já o Concílio Vaticano II dizia há 40 anos: “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador” ( Gaudium et spes, 27 ).
A Igreja ousa mesmo dizer, com S. Tomás: “toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, nalguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei”.

5. DESTINO DA RENÚNCIA QUARESMAL
Neste tempo propício que a Igreja nos propõe como período de conversão e de partilha, convidamos, uma vez mais, toda a comunidade diocesana a fazer a experiência da renúncia e da partilha.
Renunciar e privar-se de alguma coisa que nos dá prazer, para partilhar com os outros o produto dessa privação, é sempre fonte de liberdade e de alegria.
Em sintonia com a proposta do Papa João Paulo II, “Aquele que acolher em meu nome uma criança como esta, acolhe-me a Mim” (Mt.18,5), ofereceremos o fruto das nossas renúncias do corrente ano às crianças maltratadas e carenciadas da África, de modo especial às crianças da Guiné Conakry, juntamente com as outras dioceses portuguesas.
Serão igualmente contempladas as crianças atendidas, em países de missão, por Congregações Religiosas, que também trabalham nesta Arquidiocese.
Este testemunho de solidariedade cristã para com as crianças que sofrem apontará caminhos novos de civilização, de paz e de promoção dos direitos fundamentais a uma sociedade decadente mas ansiosa por uma vida nova.
Como nos anos anteriores, confiamos esta iniciativa de amor cristão à Cáritas Diocesana que tem sabido pôr o maior generoso empenho na coordenação da renúncia quaresmal.

Aos seus responsáveis, aqui queremos deixar uma sentida palavra de apreço e gratidão.

Évora, 11 de Fevereiro de 2004

D. Maurílio de Gouveia, Arcebispo Metropolitano
D. Amândio Tomás, Bispo Auxiliar

 

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