Correio do Vouga
- 11 Fev 04
Um conluio nunca visto
D. António Marcelino, Bispo de Aveiro
O país está sujeito a
uma campanha organizada, em todos os tons e recantos, que, a pretexto da
despenalização do aborto, espera que o mesmo acabe legalizado por
completo. Para já, ainda com algumas limitações, mas abrindo sempre mais
a porta, até que fique escancarada de vez. Trata-se de um caminho de
progresso ou do regresso à barbárie?
São os meios de
comunicação social públicos e privados; são os jornalistas de turno,
atentos e aguerridos; são os políticos, uns a dizer logo que sim, outros
que talvez, e outros que assim-assim, pois com eleições à porta não se
pode contrariar a maré; são escritores e poetas, professores e alunos,
uma vez que, em assunto desta monta, ninguém pode deixar de ter opinião;
são sondagens sobre sondagens, na rua e pelo telefone, mais preocupadas
em fazer opinião, que saber da opinião; são abaixo-assinados, recolhendo
assinaturas em toda a parte, dando tom à pergunta para ser mais fácil a
resposta e mais rápido o assinar a folha; são intervenções sibilinas de
gente da alta sociedade que, não querendo dizer tudo, diz mais que tudo…
O tempo deu-me azo
para ver o panorama, para ler e ouvir, reflectir e poder concluir que
nunca, em minha vida, vi conluio tão organizado, tão cheio de meias
verdades, tão carregado de emoções, tão vazio de razões, tão descentrado
do essencial, tão alienante, tão a comando de mãos às claras e de mãos
às ocultas. Um retrocesso claro, porque desumano e cego.
O problema é sério,
ninguém o pode negar. Está em jogo o maior de todos os valores, que é o
da vida. De maneira inesperada o país deixou-se ir a reboque de
políticos, sindicatos, mulheres que gritam, militantes da comunicação. O
espectáculo teve o seu auge junto ao Tribunal de Aveiro. Aí se proclamou
que o aborto é um direito que se deve respeitar, e já. Os paladinos da
democracia decretaram que, impedir a mãe de ser dona do seu corpo e de
abortar livremente, é ser retrógrado e hipócrita. Nada menos.
De modo sereno, é
preciso dizer que matar um ser humano é sempre crime. Em qualquer
homicídio, o juiz pesará as atenuantes que, em muitos casos, podem ser
muitas e consideráveis. Julgará com justiça e segundo a lei. E até pode
absolver o homicida. Ou assim, ou a vida deixará de ser o dom por
excelência, precioso, único e inviolável. Se, para muita gente, a vida é
coisa de somenos importância quando se trata de um filho no seio
materno, porque há-de ser coisa de tanto apreço e estima, quando se
trata de uma criança violada, de um doente incurável, de um jovem
paraplégico, de um idoso sem família, de um sidoso inocente, de um
imigrante sem sorte? Porquê? Será apenas pelo facto de se ter ou não um
rosto já visível? Onde está a hipocrisia, afinal?
É tempo de se pensar
com liberdade e serenidade que, se não se respeita a vida nascente
indefesa, não há mais razão para se respeitar a vida, seja de quem for e
em que circunstâncias for. Os defensores do aborto estão colocando a
espada de morte sobre o seu pescoço. A degradação social começa assim.
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