Público - 9 Fev 04

Finanças Sãs
Por LUÍS SALGADO DE MATOS

O debate sobre as finanças públicas portuguesas revela muitas vezes falta de sentido da realidade. Se não o recuperarmos, pagaremos caro.

O clima de ilusão que alimenta o nosso debate financeiro começa por se revelar no facto singelo de muitas e boas almas identificarem o rigor financeiro com Salazar. As boas finanças estariam à direita, a formiga trabalhadora, ao passo que esquerda seria a cigarra perdulária. É esquecer Attlee e Mendes-France. É não olhar em volta. Nos Estados Unidos, o esquerdista Clinton fez boas contas e o direitista Bush apresenta défices excessivos, mesmo tendo em conta a fase actual do ciclo económico.

Muitos intervenientes nesse debate pensam que somos livres de escolher entre termos as contas do Estado sob domínio ou deixarmos o défice crescer sem fiscalização. De facto, não temos essa liberdade. Se não tivermos contas equilibradas - sendo o período do equilíbrio o do ciclo económico -, cairemos na decadência social e política.

Porquê? Défice público elevado é dinheiro dado aos lóbis. Os lóbis querem consumo: mais aumentos de vencimentos sem relação com a produtividade, mais medicamentos gratuitos quer curem quer não curem, mais rotundas municipais sem trânsito para distribuir, mais piscinas locais sempre subutilizadas. Mais consumo é menos produção de bens transaccionáveis - isto é: de bens que podemos exportar.

Para exportar, precisamos de mais produtividade. O aumento do défice público dispensa-a. Sem aumento de produtividade, o emprego diminuirá - mesmo na fase alta do ciclo económico. Menos emprego é menor cobrança do imposto. O défice volta a agravar-se e deixa de ser gerível pelo Estado. O fecho de empresas multiplica-se. Os agentes políticos enervam-se. Os centros de decisão nacional são transferidos para o estrangeiro - onde ninguém verte um cêntimo por haver mais um português desempregado. Temos então que acelerar a venda dos nossos activos - prédios, fábricas, terras - para que a banca estrangeira nos empreste, a juro mais alto, o necessário à continuação dos pagamentos. Para comprar ainda mais barato esses activos, os decisores externos corromperão os nossos políticos e jornalistas.

Toda a política portuguesa está inclinada para gastar dinheiro do Estado. O Pacto de Estabilidade e Crescimento, marcando-lhe limites rígidos, era o único factor indesmentível que impunha o princípio da realidade. Esse travão está em vias de desaparecer. E, infelizmente, não percebemos que a Alemanha e a França lhe põem termo porque passaram a desvalorizar a solidariedade europeia.

O défice é uma dieta perigosa: sabe-nos bem quando comemos e só anos depois percebemos o mal que nos faz. O leitor perceberá a vantagem das boas contas quando deixar de receber a pensão de reforma - ou quando tiver a certeza que nunca a receberá. Esperemos que não o perceba tarde demais. Perceberá a tempo?

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