Público - 3 Fev 04

Maus Exemplos
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES

Para muitos portugueses, mesmo para não adeptos do FC Porto, José Mourinho é, ou era, uma referência. Simbolizava a imagem do lutador que nunca se rendia, do líder cheio de autoconfiança, por vezes no limite da arrogância mas sem se amedrontar face aos mais duros desafios.

Muitos jovens poderiam sonhar: mesmo para os que não têm a habilidade de Figo, sobrava o exemplo da determinação de Mourinho. Agora, depois do que disse - e do que terá feito -, José Mourinho deixou de ser exemplo que os pais possam apontar aos filhos. Porque não podem desejar que eles cresçam pensando que o país não os merece nem dizer-lhes que é normal levar a emoção de um jogo de futebol aos limites do delírio irracional.

Há responsabilidades que vêm junto com o sucesso e com a capacidade de atrair uma nuvem de microfones ávidos de uma declaração forte. Isso é algo que Mourinho devia saber, como deviam saber todos os dirigentes desportivos. Infelizmente comportam-se como se não fizesse diferença serem escutados por milhares de adeptos, sobretudo jovens, ou estarem sentados ao balcão de uma taberna.

Os últimos dias foram tragicamente marcados pela capacidade de alguns protagonistas do mundo do desporto ultrapassarem os limites - e de o fazerem poucas horas, ou dias, depois de terem fingido que estavam comovidos com a morte de um jovem futebolista. Num dia verteram lágrimas de crocodilo e trocaram abraços encanados para as câmaras de televisão. No dia seguinte empenharam-se em reacender a fogueira das paixões, deitando gasolina sobre a fúria dos extremismos clubísticos.

O tom foi dado por Dias da Cunha, um homem que teve uma respeitada carreira como empresário mas que se transfigura quando têm um cachecol do clube ao pescoço. Furioso por o Ministério da Administração Interna ter obrigado o Sporting a cumprir a lei, chamou a imprensa para proclamar que "as autoridades da segurança baixaram as calças face às ameaças portistas" e outros mimos do género. O que é tudo menos edificante.

A orquestra seguiu de pronto o maestro e, nos dias que se seguiram, as trocas de "mimos" foram em crescendo, com dirigentes e treinadores a desdobrarem-se em ameaças veladas que, nas suas cabeças doentias, deveriam funcionar como estímulos às claques ou aos jogadores - como se a qualidade de jogo das equipas fosse uma função directa das alarvidades proclamadas aos quatro ventos.

Tudo acabou por culminar na noite de domingo no mesmo estádio onde, uma semana antes, Féher tinha morrido. Menos de duas horas separaram a homenagem encenada antes do jogo começar e as cenas de pancadaria generalizada quando este terminou. Pancadaria que se iniciou dentro de campo, em cenas tipicamente sul-americanas, e se transmitiu às bancadas.

O que se passou não surpreende: é o corolário lógico do comportamento irresponsável de senhores que vestem fato e gravata, convidam os poderosos para os seus camarotes, dizem que querem dar-se ao respeito mas, sem pudor, se comportam como carroceiros na primeira oportunidade.

Os exemplos devem vir de cima, dos mais responsáveis, dos ídolos das multidões - e esses exemplos têm sido os piores.

PS - Distâncias à parte, a linguagem utilizada em algum debate político nos últimos dias não anda longe da destes responsáveis desportivos. Será que os próprios não se apercebem disso e das consequências que tal pode ter?

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