Público - 8 Fev 03
A Violação Colectiva
Por DANIEL DEUSDADO
Este editorial deveria servir para dar os parabéns à SIC e, no entanto, não pode
deixar de reflectir a "violação colectiva" a que todos fomos "forçados" a
"assistir" nos principais jornais da estação
O primeiro impulso é o de fazer de conta que não se viu, enfim, que já estamos
habituados, que podemos sempre mudar de canal, que as regras são estas, que já
nada nos espanta, que não é novidade para ninguém, que, que, e que... Mas depois
fica uma sensação estranha: por muito reconhecimento profissional que todos
tenhamos pelo trabalho da SIC no caso da pedofilia, pela forma determinada como
a direcção de informação do canal de Carnaxide tem acompanhado o caso - trazendo
à superfície elementos essenciais para a revelação destes escândalos -, é
impossível não se fazer a pergunta: é mesmo necessário mostrar-se, às oito da
noite, por duas vezes seguidas, com repetição à hora do almoço do dia seguinte,
como é que duas meninas de sete e oito anos descrevem um eventual acto de abuso
sexual ou violação?
Sem que seja possível defender-se a ideia de que as crianças devam viver numa
redoma artificial face aos problemas que estão à sua volta, um desenvolvimento
noticioso deste tipo é altamente duvidoso. Em resumo e simplificando: é a
narração explícita de um abuso sexual de uma criança por um adulto, contado na
linguagem que as próprias crianças usam e percebem. Não pode ser pior.
É inconcebível que àquela hora - oito da noite -, haja um conteúdo informativo
daquele teor, por muito que se avise que os termos que se seguem são
contundentes. Uma vez mais: se as imagens ou as palavras são contundentes, que
passem depois das onze da noite em programas especiais de informação, para quem
os quiser ver. Nos noticiários da hora do almoço ou do jantar são um convite a
eliminar a informação da vida quotidiana dos portugueses.
O mais extraordinário deste excesso é o facto de a relevância da informação da
SIC ser indiscutível, tão indiscutível quanto a mera gratuitidade da narração do
acto sexual. A SIC teria os mesmos méritos informativos sem ter de esmagar-nos
com a pedofilia a sangue frio. Assim, em vez de contribuir apenas para informar,
a SIC gerou ainda mais repulsa sobre este assunto, vontade de não querer saber,
de se mudar de canal, de esquecer o que se passa em Portugal. Exactamente o
contrário do pretendido.
Um exemplo: imagine-se que existia um vídeo da violação das crianças. A SIC não
o passaria, estamos certos disso. Seria brutal, pornográfico, abjecto.
Entretanto, existe um texto (a queixa apresentada na GNR). Como se sabe, as
palavras são símbolos que nos permitem reproduzir mentalmente a realidade. O que
fez a SIC? Deu-nos as palavras e simulou televisivamente o cenário descrito
naquelas violações. O conjunto (narração+cenário) levou a que cada espectador
"visse" a violação. Pergunta: para quê? Para acreditarmos mais? Mas, em
princípio, a generalidade das pessoas acredita na informação!
Este editorial deveria servir para dar os parabéns à SIC e, no entanto, não pode
deixar de reflectir a "violação colectiva" a que todos fomos "forçados" a
"assistir" nos principais jornais da estação. A vida torna-se ainda pior quando
passamos a conhecer ao detalhe as manhas do pedófilo perante a criança. É o nojo
total.

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