Público - 20 Fev 03

O Segredo e a Justiça
Por EDUARDO MAIA COSTA

Ninguém de boa-fé contestará que na generalidade dos crimes, e especialmente nos casos mais complexos e de criminalidade organizada, uma investigação feita na "praça pública" ou em "colaboração" com os arguidos está destinada ao fracasso

O contraste é evidente: quando uma actriz conhecida é assaltada na auto-estrada por uns jovens (negros, ainda por cima), ergue-se um clamor nacional exigindo um endurecimento punitivo, o abaixamento da idade de
imputabilidade penal, condena-se a "brandura" dos nossos costumes judiciais que deixam em liberdade tantos criminosos e a "caça ao homem" (sic) é mobilizada com aplauso geral; porém, quando algum autarca ou dirigente desportivo conhecido, após longa e complexa investigação, é detido para imposição de medida de coacção, nomeadamente de prisão preventiva, logo lhes é montado palco em todos os telejornais para exercício tribunício da sua defesa, e uma larga solidariedade lhes é demonstrada, desde os "populares" revoltados com a "injustiça" até distintos juristas que então se lembram de como se tem exagerado no recurso à prisão preventiva e como está desprovido de garantias o arguido, e exige-se a completa mudança das "regras do jogo" em processo penal.

Mais gritante é o contraste quando ele ocorre no mesmo processo: se um tal Silvino é acusado de pedofilia, ele é visto como inimigo público a abater e a prisão preventiva de tal "criminoso" é um imperativo a que nenhum juiz se pode subtrair, sendo simultaneamente exigida em altos gritos a punição de todos os culpados; mas se é um conhecido Cruz que é acusado e detido pelos mesmos factos, então clama-se pela falta de garantias na aplicação da prisão preventiva e toda uma extensa e árdua argumentação é invocada em prol do reforço das garantias do arguido. De uma exacerbada perspectiva da vítima passa-se num ápice a um radical alinhamento com o arguido (com este tipo de arguidos).

Este novo "garantismo" reclama nomeadamente uma revisão das regras do segredo de justiça, o que não seria dramático, se não fosse posta em termos tais que subvertem toda a estrutura básica do processo penal e põem em causa a eficácia da investigação e, portanto, o exercício do direito de punir por parte do Estado. Na verdade, ninguém de boa-fé contestará que na generalidade dos crimes, e especialmente nos casos mais complexos e de criminalidade organizada, uma investigação feita na "praça pública" ou em "colaboração" com os arguidos está destinada ao fracasso. A abertura do inquérito ao arguido, tornando contraditória uma fase por natureza inquisitória, seria catastrófica para a investigação, uma vez que facultaria ao arguido nomeadamente a possibilidade de sonegação e de destruição de provas, desequilibraria o processo penal, que confere ao arguido a possibilidade de contestar a acusação do Ministério Público na subsequente fase de instrução, e sobretudo em julgamento, fase contraditória por excelência, desresponsabilizaria o Ministério Público, que não mais poderia controlar e executar a estratégia investigativa, em suma, comprometeria seriamente, na generalidade dos casos, o exercício da acção penal. E mais: conteria o grave risco de derivas perversas, como o recurso ao pré-inquérito ou a inquéritos "informais", só se abrindo o inquérito formal depois de a investigação estar suficientemente avançada para que a intromissão do arguido não lhe pudesse causar danos, tudo isto se traduzindo afinal numa redução drástica das garantias de defesa do arguido.

Assim, no fundamental, o regime do segredo de justiça actual deve manter-se; explicando melhor: deve manter-se o segredo de justiça como regra até ao final do inquérito. Mas já não se justificará que ele se mantenha na fase de instrução, a não ser que seja esse o interesse do arguido. Há, porém, uma questão que tem sido agora suscitada e que merece análise: é a do reclamado acesso do preso preventivo ao processo para contestar, em recurso, a motivação do despacho que decretou a prisão preventiva. Poderá efectivamente argumentar-se que, se desse despacho não constarem os factos que fundamentam a prisão, o arguido fica impedido de contestar tal despacho e portanto a sua defesa fica comprometida quanto àquela decisão. Aqui poderá realmente admitir-se alguma inovação legislativa no sentido de obrigar o tribunal, não certamente a "abrir o inquérito", mas a seleccionar as provas que entender estritamente adequadas a comprovar a necessidade da prisão preventiva e só dessas dar conhecimento ao arguido.

Já no domínio das relações com a comunicação social, não parecem necessárias alterações legislativas. A lei actual já prevê a possibilidade de serem dados esclarecimentos públicos pelas autoridades judiciárias quando sejam pedidos por pessoas postas em causa publicamente ou quando, em casos de repercussão pública, seja necessário repor a verdade, para garantir a segurança das pessoas e a tranquilidade pública.

Necessária será, sim, uma nova prática neste domínio por parte das autoridades judiciárias, para que a opinião pública não fique à mercê de informações falsas ou deturpadas por parte daquela parcela da comunicação social que sobrepõe os interesses comerciais à ética informativa. Um relacionamento frontal e transparente entre os tribunais e a comunicação social é condição indispensável para o exercício do direito constitucional de informar e de ser informado com verdade, e também para a confiança pública nos tribunais.

No processo penal, confrontam-se diversos interesses, nomeadamente o direito de punir do Estado, que visa salvaguardar a paz jurídica e reflexamente a paz social perturbada pelo crime, e, no pólo oposto, o direito de defesa do arguido, que integra um complexo de garantias processuais. O processo penal democrático não privilegia nenhum destes interesses em confronto, mas também não esvazia qualquer deles. Não seria uma medida de justiça democrática prejudicar gravemente o exercício do direito de punir, por via de uma redução drástica do segredo de justiça, motivada notoriamente pela preocupação de proteger os arguidos "ilustres".

Jurista

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