Diário de Notícias - 25 Fev 03
 
Na saúde, o cidadão está primeiro
Luís Filipe Pereira

É muito estimulante para um ministro da Saúde verificar que a discussão começa finalmente a centrar-se nas medidas concretas que viabilizam a reforma inevitável do sector da Saúde e não nos eternos diagnósticos que alguns dos comentadores e profissionais estavam habituados a fazer. Num sector em que todos temos opinião, ou porque somos profissionais ou porque somos utentes, a verdade é que a opinião dos profissionais chega com maior facilidade aos meios de comunicação, dominando a agenda, em detrimento da voz do cidadão. Não é possível mantermo-nos no conforto dos diagnósticos. É fundamental passar ao estádio seguinte e avançar com medidas concretas que corporizem as reformas necessárias no sector da Saúde.

Foi esta atitude que levou à elaboração do Programa de Combate às Listas de Espera Cirúrgicas, posto no terreno logo após a tomada de posse do Governo. Foi assim com a política consistente de aumento dos genéricos e dos preços de referência. Está a ser assim com a nova Lei de Gestão Hospitalar e com a criação dos 31 hospitais com gestão empresarial. Irá ser assim com a nova política de cuidados primários. Por muito irritante que seja para alguns, o foco central no cidadão deixou de ser um slogan para passar a ser uma
realidade.

Por que é contestada a nova política de cuidados primários?

Os sindicatos médicos e a Ordem argumentam com quatro razões fundamentais para justificar a greve efectuada, no mês passado, nos centros de saúde .

A primeira razão invocada é de que o ministro da Saúde vai permitir que médicos não qualificados vão desempenhar funções nos centros de saúde . Não é verdade. Já foi repetido até à exaustão que a figura do médico de família como um especialista em Medicina Geral e Familiar está consagrada e é para manter. Foi também já repetido inúmeras vezes que as carreiras destes especialistas (bem como as dos restantes profissionais que actuam no sector) não estão em causa e não são alteradas pela nova legislação. O que tem sido dito, mas alguns teimam em não querer ouvir, é que não havendo no País médicos suficientes com essa especialidade para atingir o objectivo de justiça social de atribuir um médico de família ao milhão de portugueses que o não possuem, o Governo, continuará a contar com os médicos com formação em Clínica Geral, que já actuam, há longos anos no SNS, e sobre os quais nunca foi suscitada qualquer objecção quanto à sua qualificação técnica. Se a cada um destes profissionais, que no conjunto atingem um número perto dos 6200, for atribuída uma lista de 1500 utentes, o que daria uma cobertura nacional a 9 300 000 pessoas, é possível satisfazer o objectivo de disponibilizar um médico de família para a esmagadora maioria, se não para a totalidade, da população portuguesa. Se em casos limitados, for necessário o recrutamento de mais profissionais, estes poderão ser especialistas em várias áreas em que terão um papel importante no âmbito das suas especialidades, libertando médicos de família de algumas das suas tarefas. Em qualquer caso serão respeitadas as qualificações técnicas legalmente exigíveis e as directivas comunitárias sobre a qualificação dos profissionais.

De referir também que esta legislação em nada altera o que se encontra estatuído quanto à formação dos profissionais do sector. Face a este quadro, os portugueses podem interrogar-se quanto aos motivos das reacções suscitadas pela legislação neste aspecto e também quanto às afirmações (e intenções) dos responsáveis sindicais e também de pessoas, com responsabilidades elevadas no passado, como o ex-ministro dr. Paulo Mendo, que afirmam que os cuidados de saúde primários vão regredir 40 anos (?!) e que o ministro quer que os centros de saúde funcionem como estabelecimentos comerciais (?).

A segunda razão de contestação é a que se prende com a organização e gestão futura dos centros de saúde . Para que a cobertura de toda a população pelos profissionais médicos de família seja efectiva, ou seja, que a cada profissional seja atribuída uma lista de 1500 utentes, são necessárias modificações na organização e gestão dos centros de saúde . Com efeito, existem problemas de gestão evidentes neste campo: há centros de saúde que têm sensivelmente a mesma população coberta e o mesmo número de profissionais médicos mas em alguns deles a quase totalidade dos respectivos utentes tem atribuído um médico de família enquanto que nos restantes, a falta destes profissionais faz-se sentir para 20% ou mais da população coberta. A gestão eficiente dos centros de saúde é também fundamental para outras áreas da prestação dos cuidados de saúde primários à população: a marcação de consultas pelo telefone, a observância dos horários das consultas e a organização prévia das consultas de forma a evitar que os utentes se desloquem a horas matinais para os centros de saúde, são alguns dos exemplos nesta área. A opção pela existência de um director do centro e não pela manutenção da actual solução de uma direcção constituída por três elementos em que a responsabilização se diluía, aponta para maior eficiência na gestão. Em qualquer caso está salvaguardada pela legislação em causa a autonomia técnica de cada profissional médico, e igualmente dos restantes profissionais, ao contrário do que afirmam os responsáveis sindicais.

A terceira razão, puramente especulativa, diz respeito à afirmação exaustivamente repetida sobre privatização dos centros de saúde . Insinua-se que o Governo quer privatizar tudo a reboque de interesses inconfessáveis do sector privado. Não é verdade (e os responsáveis sindicais sabem-no bem) que a legislação contemple a alienação dos centros de saúde ao sector privado.

O que a legislação prevê é que a gestão possa ser atribuída a entidades públicas ou privadas, designadamente cooperativas de profissionais, que queiram assumir a gestão de alguns centros de saúde, desde que sejam contratualizados, com o SNS, objectivos a atingir que satisfaçam as necessidades dos utentes.

Por último, uma quarta razão de oposição ao diploma, segundo os sindicatos, relaciona-se com o facto de esta legislação pôr em causa os direitos dos profissionais. A este respeito, é preciso dizer que nada nesta legislação atinge, condiciona ou limita os direitos dos profissionais. A adopção da figura do contrato individual de trabalho pode apenas ser aplicada aos profissionais que entrem de novo no sector da Saúde (à semelhança do já instituído na Lei de Gestão Hospitalar) ou aos profissionais que optem por este regime de trabalho em troca de contrapartidas.

Mesmo no caso da gestão de alguns centros de saúde poder ser confiada a outras entidades (por exemplo, cooperativas de profissionais), apenas passarão para o regime de contrato individual de trabalho se derem a sua expressa concordância.

Quem tem medo da mudança?

Compreende-se que estas mudanças motivem resistências, mas no interesse da população, não é possível nem socialmente justo a manutenção de algumas situações existentes nos centros de saúde . Esta constatação da resistência por parte dos responsáveis sindicais não é uma quimera nem um discurso primário e oco por parte do responsável da área da Saúde, como inexplicavelmente o ex-ministro da Saúde, dr. Paulo Mendo pretende fazer crer.

Aliás, nestes momentos de introdução de reformas estruturais existem sempre algumas pessoas, que apenas confundem a opinião pública, com opiniões supostamente neutrais.

A nossa mensagem é muito clara para a população. O País necessita de ultrapassar problemas sérios existentes nos centros de saúde , que por exemplo não deixam um qualquer cidadão marcar uma consulta por telefone, quelhe exigem deslocações matinais para obter uma consulta e que não respeitam os horários das consultas marcadas, e isto obviamente sem que a solução destes problemas impeça a continuação da aposta na qualidade dos cuidados de saúde prestados à população.

O ministro da Saúde tem de louvar também todos os profissionais _ e são muitos _ que não se revêem nas posições imobilistas e que diariamente cumprem e exercem efectivamente a medicina em benefício da população. Estes devem ser estimulados e respeitados. É com eles que o País conta para garantir a cada português o seu direito à saúde.

WB00789_1.gif (161 bytes)