Público - 3 Fev 03
Vale a Pena Agravar as Penas?
Costa Andrade
Chegam sinais que, a serem fiáveis, permitem concluir que o poder político,
e particularmente o Governo e a maioria que o suporta, se prepara para um
novo exercício de agravação de molduras penais. Desta vez em áreas como a
criminalidade ecológica e os crimes sexuais contra menores. A razão desta
nova erupção do instinto punitivo é óbvia e assumida. É o espanto
desencadeado pelo naufrágio do Prestige e, sobretudo, pela experiência
traumática da massiva e sistemática manifestação de pedofilia na Casa Pia.
Em que filhos de deuses menores da sociedade portuguesa, acolhidos à
solicitude do Estado, continuaram a honrar o seu destino de filhos menores
e, por isso, condenados a ser vítimas maiores da mais devastadora e
estigmatizante vitimização. Uma vitimização que induz identidades e
carreiras de marginalidade e desespero, numa trajectória que, não raro, tem
o suicídio como lugar de passagem. E, por vias disso, uma vitimização que
espelha um destino; e que ao mesmo tempo o reproduz, o prolonga e, de certa
maneira, o "legitima". E tudo isto sob a deserção e evasão dos políticos e
do sistema político. Que não quis ver, ouvir, saber, reconhecer, agir,
reagir, retirando-se para o silêncio da irresponsabilidade, forma
eufemística de dizer indignidade. E sob a relativa ineficácia das instâncias
de controlo, perseguição e punição. E sob a distanciação álgida e inerte da
lei penal: uma lei que sempre incriminou e puniu os abusos sexuais de
menores mas que invariavelmente persistiu muda na sua rigidez de law in book,
não trazida ao campo da law in action.
É sobre este pano de fundo que o poder político se propõe mudar a lei e
agravar as penas. Quando os pedófilos abusaram das crianças, os políticos
debandaram e as instâncias de perseguição falharam, só poderia esperar-se do
sistema político uma reacção de sentido univocamente contrafáctico,
induzindo mudanças decisivas ao nível dos factos: os abusos dos pedófilos, a
deserção dos políticos e a ineficácia das instâncias de controlo formal. E,
ao mesmo tempo e reflexamente, uma reacção que reafirmasse a validade e a
legitimidade da lei e reforçasse a confiança da colectividade na sua
eficácia.
Não é assim que o entende o poder político, que se propõe precisamente o
contrário: mudar a lei, forma larvada de punir a própria lei. Como se a lei
representasse ela própria a transgressão. É verdade que a insuficiência e a
ineficácia preventivas da lei não estão minimamente demonstradas, pela razão
simples de que ela não tem sido, pura e simplesmente, posta à prova. Mas a
lei é pela sua plasticidade o mais atraente bode expiatório para as nossas
frustrações colectivas.. É muito mais fácil e catártico mudar a lei do que
curar a cegueira de políticos que não querem ver ou vencer a inércia de um
sistema de controlo. Além do mais, o dedo apontado à lei leva implícita
consigo a mensagem tranquilizadora de que tudo o resto está bem assim. É a
legitimação mais poderosa do statu quo e dos factos que o mostram.
De resto, este procedimento, longe de ser ocasional, corresponde a uma das
mais marcantes "constantes antropológicas" do modo português de fazer
justiça criminal. No verão ardem as florestas? Agravam-se as penas previstas
para os incendiários. Um primeiro ministro é injuriado na Baixa de Coimbra?
Agrava-se o regime punitivo destes crimes.. Um polícia é agredido?
Agravam-se as penas dos crimes contra os polícias. Os elefantes passeiam
sobre os nenúfares? Agravam-se as penas dos elefantes que espezinham as
flores. Uma espiral imparável que, uma a uma, acabará por tocar todas as
manifestações de delinquência. Só que, depois de mudar as leis e agravar as
penas, o poder descansa. Já celebrou o rito de rasgar as veste de
indignação, já cumpriu o seu desígnio de alimentar o caudal de um direito
penal simbólico, já revalidou a sua legitimação na fonte da law and order.
Mesmo que esta delirante actividade legiferante tenha apenas e
invariavelmente como reverso a subida exponencial das cifras negras e da
criminalidade oculta.
Sabe-se, aliás, que esta febril e constante inovação legislativa configura a
delícia dos agentes de crimes. Que se vão esgueirando nos interstícios da
plétora legislativa e na complexidade inextrincável dos problemas e
conflitos que a sucessão de leis determina. É o que paradigmaticamente
ilustra a experiência em matéria de criminalidade tributária. Enquanto a lei
penal muda praticamente todos os anos desde o celebrado RJIFNA de 1990 - e
para soluções sistematicamente mais drásticas - a mancha da criminalidade
fiscal alastra de forma avassaladora, sob o manto diáfano da impunidade.
Em nossa opinião, bem avisado andaria o poder político se escutasse a
sabedoria de duas sábias duas lições.
Uma velhinha de mais de dois séculos, mas cuja pertinência e validade
continuam inquestionáveis. Foi enunciada no século XVIII pelo Marquês de
Beccaria e diz: o que determina a eficácia preventiva das leis penais é a
certeza e a celeridade da aplicação das e não da sua gravidade abstracta.
Nada adiantando, por isso, o agravamento das penas se a sua aplicação
efectiva é pouco provável e muito diferida no tempo. Isto é, se a certeza e
prontidão das gratificações do crime tiver como reverso penas incertas e
longínquas.
A segunda vem de um poeta contemporâneo de língua portuguesa. E aponta para
a insuficiência das soluções políticas que se esgotam ao nível das leis. É
que, diz o poeta: "as leis não bastam. Os lírios não nascem das leis" (Drummond
de Andrade). |