Público - 12 Fev 03
O Que É de Mais...
Por JOAQUIM FIDALGO
Às tantas o caminho é mesmo por aí, pela diferença mais que pela imitação
Estava danado, o homem. Conversava com dois amigos mas todo o café podia
ouvi-lo. Tema? Pedofilia e afins. "O" tema de tantas e tantas conversas de café
por estes dias, sobretudo os que têm televisão e são ainda lugar de
assistência colectiva.
Danado porque acha isto tudo excessivo, isto que "as televisões" (não lerá
também certos jornais?...) têm andado a fazer. E uma em particular o vem
danando. "Está resolvido, só quero chegar ao fim do Anjo Selvagem, que acho que
é esta semana, e depois acabou-se, não ponho mais na TVI!... Poça que aquilo
também é de mais, já não se aguenta!..." E, logo de seguida, até chegava ao
ponto de aplaudir ("é muito bem feito, eles andam a pedi-las!") o modo
incorrecto como uma familiar de um dos presos nesta história tratara um
jornalista: prometera responder a perguntas depois de ler um comunicado mas
acabou por faltar ao prometido, quando já tinha conseguido ler o seu comunicado,
"fazer passar" a sua mensagem. Habilidade de muito boa gente.
O homem encheu-se, portanto. E vai mudar de canal - ou, pelo menos, diz que vai.
Para ele, afinal, televisão não é só uma; são várias, algo iguais, mas umas mais
"iguais" que outras.
Para mim também.
Não sou um espectador tão sistemático que possa pronunciar-me com rigor sobre o
que passa, em matéria de informação, nos diversos canais. Mas vou vendo isto
aqui, aquilo ali, e vou confirmando que há diferenças, seja no que se diz e
mostra, seja no modo como se diz e mostra. Mais hoje do que ontem. E, espero,
mais amanhã do que hoje.
Ainda há dias vi na RTP1 uma pequena reportagem sobre pessoas sem abrigo, coisa
simples e despretensiosa, mas que revelou nos pormenores (os das palavras e os
das imagens) um cuidado com as pessoas, uma atenção à sua dignidade, um respeito
pela sua intimidade, que me chamou a atenção. Não porque fosse algo de
excepcional: pelo contrário, devia ser modo de condução elementar de qualquer
jornalismo que se preza. Mas, no contexto de razoável degradação a que temos
assistido nos últimos anos, apareceu como quase excepcional. Fiquei persuadido
de que era mais um sinal (e outros há) de que a televisão de serviço público
parece estar a mudar, a tentar encontrar o seu lugar específico, a
diferenciar-se das lógicas mais imediatistas e tablóides das suas concorrentes,
a não se deixar seduzir pelo estilo delas. E não é que, aparentemente, a
estratégia até tem dado resultados na adesão do público, pois as suas audiências
estão mais altas do que há uns meses? Às tantas o caminho é mesmo por aí, pela
diferença mais que pela imitação, pela contracorrente mais que pela onda
dominante, pela calma mais que pelo frenesim, pelas pessoas mais que pelos
números.
Aquele homem estava danado e cansou-se. Encheu-se. Decidiu mudar. Quem sabe se,
na mudança, não descobre por outros canais outras maneiras de contar o mundo que
lhe caiam no goto? Claro que é só um. Mas é um. E um já chega para nos dar
esperança - e vontade de continuar a trabalhar por isso. Sem mais leis, sem
censura, nada disso. Mas sem desistir de querer - e de crer.

|