O que o Banco Alimentar faz que mais ninguém faz José Manuel Fernandes
É tempo de recuperar a ideia de Fraternidade que nos
envolve e responsabiliza em lugar de nos ficarmos
pela Solidariedade que delegamos no Estado para mais
tarde a ela termos também direito
Hoje é certo e sabido que se realizarão, um pouco
por todo o país, "ceias de Natal" para os pobres,
para os sem-abrigo, para muitos idosos que vivem
sozinhos. Aqui e além aparecerá uma autoridade
pública que sublinhará a importância de não nos
esquecermos dos mais fracos e desvalidos. É assim há
muitos anos e até custa imaginar como poderiam as
televisões encher os seus intermináveis serviços
noticiários de uma hora sem um "directo" para uma
destas "ceias".
A maioria destes encontros é proporcionada por
instituições de solidariedade social. E grande parte
dessas instituições está, de uma forma ou outra,
ligada à Igreja Católica. Por regra, também não
servem apenas aquela refeição especial: todos os
dias do ano apoiam os mais desfavorecidos, como
sucede com a Comunidade Vida e Paz, que já ofereceu,
nos dias 19, 20 e 21, as suas refeições de Natal na
Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Já no
Porto, só para hoje, há iniciativas dos Albergues
Nocturnos, uma instituição fundada em 1881, do
Coração da Cidade, da Paróquia da Campanhã e da
Missão de Caridade dos Samaritanos.
Mas se estas iniciativas têm a cobertura quase
rotineira da comunicação social, é mais raro tomar
contacto com o trabalho de formiga dos voluntários
que, todos os dias, todas as noites, percorrem as
ruas de muitas das nossas cidades a dar apoio aos
sem-abrigo. Só a Comunidade Vida e Paz distribui, na
zona de Lisboa, 800 sanduíches por dia. E muitas são
para dar a pessoas que até trabalham, têm emprego
mas vivem na rua, ou acolhem-se de forma precária em
abrigos como o que AMI mantém em Lisboa, como se
relatava este domingo no PÚBLICO.
Esta rede invisível - e muitas vezes apenas
invisível porque viramos os olhos para não sermos
confrontados com a realidade - existe porque existem
voluntários de todas as horas, não apenas os que
pelo Natal se lembram dos mais pobres. E esta rede
invisível funciona porque todos os que a integram
não esqueceram o valor da terceira valência da
Revolução Francesa: a Fraternidade.
Num tempo em que todas as palavras têm um
significado, não deixa de ser significativo como a
ideia de "fraternidade" quase desapareceu do nosso
léxico, sendo substituída por uma dualidade: a
"caridade" que facilmente se critica por ser
"cristã" e a "solidariedade" que se está sempre a
exigir a essa entidade abstracta que é o Estado. Ora
a verdade é que esta última, por ser remetida para
outrem, por ser mais depressa entregue a quem vive
melhor com a burocracia do que com os seres humanos,
é sempre, será sempre incompleta.
Já a ideia de "fraternidade", por nos envolver mais
directamente, por não distinguir entre a "caridade"
praticada pelos indivíduos ou a "solidariedade
social" delegada no Estado, devia regressar ao nosso
léxico político e cultural.
Na verdade, o assumir pela sociedade civil - isto é,
pelos cidadãos de corpo inteiro da nossa comunidade
- de tarefas de pura e desinteressada Fraternidade é
mais do que aliviar a consciência ou agir
isoladamente. É ir até onde instituições como o
Banco Alimentar contra a Fome foram capazes de
chegar e mais ninguém, sobretudo o Estado, alguma
vez chegaria.
O segredo do Banco Alimentar é ser a rede ainda mais
invisível da tal rede invisível de que falámos
atrás. O segredo do Banco Alimentar não está nas
recolhas regulares de alimentos, que sensibilizam a
população e que este ano, apesar da crise, ou por
ser de crise, renderam mais do que em anos
anteriores. O segredo está na rede de recolha de
alimentos que seriam destruídos pelas grandes redes
de distribuição e ser capaz de os colocar onde são
necessários, onde fazem falta. Não em qualquer
guichet onde se tira senha, mas nas creches, nos
lares, nos abrigos, em todas as instituições onde
servir uma refeição melhor faz toda a diferença.
Muitos que são ajudados pelo Banco Alimentar nem
suspeitam que o são. As empresas que contribuem com
o grosso dos alimentos que distribui também não
reclamam publicidade ou qualquer abatimento nos
impostos. Pelo contrário.
Nesta época do ano, onde é fácil pregar a
generosidade, é importante lembrar o que há para
além das simpáticas, acolhedores mas pouco mais do
que simbólicas "ceias de Natal" mais ou menos
mediatizadas. E perceber como uma Fraternidade que
implica a nossa co-responsabilização é inseparável
da Liberdade e da Igualdade, valores que preservamos
e pelos quais também não podemos deixar de, com o
sempre presente sentido de responsabilidade
individual, lutar em cada dia que passa.
Até porque estas redes invisíveis são mais
importantes para aumentar o capital social de um
país do que outras redes gongoricamente anunciadas e
alegremente subutilizadas. Porque umas são feitas de
pessoas para servir pessoas, e as outras por vezes
não se sabem de onde vêm nem para onde vão. Nada
como dias de crise para tornar ainda mais visível o
contraste entre a importância crucial do invisível,
mas recompensador, e o que é tantas vezes apenas
muito fogo-de-artifício.